Título: Kirchner sai de um reinado absoluto para a crise política
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Fonte: Valor Econômico, 23/07/2008, Opinião, p. A12

O reinado absoluto de Néstor Kirchner e sua esposa presidente, Cristina, começou a ruir com a derrota sofrida no Senado argentino na quinta-feira passada. O estilo voluntarista de confronto e a arrogância, marcas da gestão de Néstor, transmitidas à de Cristina, sofreram um duro revés e só se manterão às custas de mais e piores turbulências políticas e econômicas.

Em poucos meses, os Kirchner desarranjaram tudo o que construíram ao longo de cinco anos. As maiorias seguras na Câmara e no Senado se fragmentaram durante a crise com os ruralistas, a ponto de a votação do Senado ter sido desempatada pelo vice-presidente, que jogou por água abaixo os planos de impor os impostos à exportação com o seu voto "não positivo". Kirchner conseguiu também desagradar as hostes peronistas, até então sob seu firme comando como presidente do Partido Justicialista. As alas descontentes do partido votaram contra a orientação oficial no Senado e agora pedem um basta nas táticas de imposição vindas da Casa Rosada. Pior que isso, com sua insensibilidade política, Néstor e Cristina conseguiram revitalizar a tênue oposição de Eduardo Duhalde, que vinha falando sozinho até há seis meses e que agora vê crescer significativamente suas chances de galvanizar os descontentes e desafiar a cúpula do partido.

Desnorteados até então pela popularidade de Kirchner e sem perspectivas de união, os partidos de oposição sentem-se agora estimulados a voltarem a ser protagonistas da política argentina. Nesse sentido, é relevante o abalo sentido pelos radicais-K, a dissidência da União Cívica Radical que foi atraída pelo poder até então inquestionável de Kirchner. Como os peronistas aliados ou dissidentes, os radicais-K pedem o fim do estilo autoritário e uma atitude mais receptiva aos diferentes pontos de vista partidários.

Kirchner também controlava com verbas, afagos e porretes os governadores, mas o apoio majoritário que tinha entre eles sucumbiu ante a sólida posição reivindicatória dos agricultores contra os impostos. Entre a insensatez do poder central e a manifestação massiva de uma importante fatia de seu eleitorado, os governadores das províncias se dividiram. Agora, alguns, como Mario das Neves, governador de Chubut e secretário de coordenação do PJ, pedem moderação ao governo e exigem a cabeça de Alberto Fernández, o chefe-de-gabinete de Cristina, homem forte de Kirchner e um dos responsáveis pelo enfrentamento que culminou com o desastre político no Senado.

Não é muito difícil saber o que deu errado para Cristina Kirchner, mas é muito complicado para os governistas discernir o que pode ser feito para consertar os enormes estragos políticos já causados. Os primeiros sinais emitidos pelas esferas de poder não são animadores. Embora o governo esteja ainda desacorçoado, surgem balões de ensaio de que a melhor forma de resgatar a popularidade de Cristina seria uma rodada de aumento de aposentadorias, salários e programas sociais. Aumentos generosos levaram a inflação para cima de 20% e vão elevá-la ainda mais, se o governo não mudar sua política monetária e fiscal.

Na linha oposta, mas com os mesmos efeitos imediatos, há os que pregam correção radical das tarifas do setor público, comprimidas há tempos e fator desestimulante de primeira linha dos investimentos. Embora a descompressão tarifária seja necessária, não é prudente fazê-la de uma só vez e desacompanhada de outras ações de política econômica.

O ambiente para a deterioração do poder político dos Kirchner foi criado pelo aumento da inflação, que não contou com nenhuma resposta ativa do governo - fora a manipulação dos índices de preços. Resolver esse difícil problema sem remendar alianças políticas será tarefa árdua, sejam quais forem as linhas de ação. Dada a tradição argentina, é possível que o grande poder de gravidade do governo central volte a atrair os descontentes. Quase todos, aliados ou oponentes, pediram mudança de estilo e de "homens". A senha para a melhor distribuição de cargos e poder foi dada e, se aceita, cimentará de novo o edifício dos Kirchner. Não é de todo descabido, porém, o cenário em que Cristina e Néstor radicalizem sua política e continuem ateando fogo às vestes. Em ambos os casos, a Argentina volta a viver tempos difíceis.