Título: Combustível amazônico
Autor: Pacheco, Silvia
Fonte: Correio Braziliense, 28/02/2011, Ciência, p. 22

Na busca por alternativas aos combustíveis fósseis, uma das que se mostram mais promissoras é a utilização da biomassa como fonte energética. Diversos estudos já demonstraram ser possível transformar materiais orgânicos em decomposição - bagaço de cana-de-açúcar, esterco, madeira, resíduos agrícolas, restos de alimentos, entre outros - no chamado etanol de segunda geração, um produto ecológico e muito econômico, uma vez que sua matéria-prima é encontrada em abundância na natureza. Infelizmente, a ciência ainda não encontrou uma forma de produzir esse tipo de combustível em larga escala, mas pesquisadores brasileiros acreditam que a solução pode estar escondida na Floresta Amazônica.

Atualmente, a fabricação de etanol só é viável a partir do açúcar, que corresponde a um terço da biomassa da cana-de-açúcar. O combustível de segunda geração (também chamado de celulósico) decorre do aproveitamento dos outros dois terços, ou seja, o bagaço e a palha da planta - o que representa uma produção muito maior sem a necessidade de ampliar a área plantada. Uma etapa fundamental desse processo é a de quebra das moléculas de celulose dos compostos de biomassa, realizada por enzimas produzidas por micro-organismos. Até agora, porém, os cientistas não dispõem de um tipo eficiente de enzima que permita uma produção industrial.

É nesse ponto que a Amazônia pode ajudar. Ali, a degradação natural de grandes quantidades de biomassa ocorre de maneira contínua e constante. Por isso, os pesquisadores esperam encontrar no local linhagens especiais de fungos e bactérias que degradem a celulose da planta de forma mais eficaz. ¿Vamos tentar fazer com o bagaço da cana-de-açúcar o que a floresta faz com a biomassa¿, resume José Geraldo Pradella, pesquisador do Laboratório Nacional de Ciência e Tecnologia do Bioetanol (CTBE).

Nos próximos quatro anos, um estudo envolvendo cientistas de São Paulo e do Pará concentrará esforços para produzir, a partir de fungos e bactérias da selva, coquetéis enzimáticos capazes de degradar a celulose. O objetivo é transformar essa celulose em moléculas de glicose que, em um outro processo, chamado fermentação, seja utilizada com leveduras para gerar o etanol de segunda geração (veja esquema abaixo). ¿Esses coquetéis são o conjunto de várias enzimas que têm funções diferentes para quebrar a molécula de celulose e levar a formação de várias outras de tamanhos menores¿, explica Alberdan Silva Santos, coordenador do projeto e pesquisador da Universidade Federal do Pará (UFPA).

Estratégia

A tarefa, no entanto, não será nada fácil. Primeiro, os pesquisadores precisarão descobrir microorganismos que produzam um certo tipo de enzima: a xilanase. Depois, deverão entender o mecanismo de produção da enzima e reproduzi-lo em laboratório. ¿Muitos dos nossos colegas, não só aqui no Brasil, usam micro-organismos do solo, onde existem folhas, dejetos e uma série de substâncias orgânicas atuando. O que queremos entender é como funciona o maquinário de quebra das moléculas¿, diz Santos.

Com o entendimento desse sistema, os pesquisadores poderão saber se as enzimas produzidas são capazes de quebrar a celulose para produzir a glicose. Toda essa ação, no entanto, vai depender do lugar onde o micro-organismo vive, que influenciará na sua capacidade de atuação. ¿Isolando esse micro-organismo, elevando ele para o laboratório , conseguimos verificar o potencial da enzima produzida¿, esclarece o pesquisador da UFPA. ¿Alem disso, um complexo enzimático produzido por um fungo ou uma bactéria pode ser mais eficiente se forem acrescentadas outras enzimas a ele¿, completa.

Segundo Santos, um fungo encontrado na região já está sendo analisado no Laboratório de Identificação Sistemática em Biotecnologia e Biodiversidade Molecular da UFPA. ¿O maquinário desse micro-organismo já foi entendido¿, revela. Em alguns meses, ele será mandado para o CTBE, em São Paulo. Outra aposta dos cientistas é o turu, animal que parece uma grande minhoca branca e leitosa, encontrado em troncos apodrecidos em mangues. Apreciado na culinária marajoara, o animal tem em seu estômago enzimas que fazem a quebra das moléculas de celulose provenientes das árvores das quais se alimenta.

Após a caracterização da atividade enzimática, os cientistas do CTBE vão otimizar o processo de produção dos coquetéis enzimáticos em conjunto com uma nova técnica de pré-tratamento da biomassa desenvolvida no próprio laboratório paulista. A partir disso, o processo será levado para ensaios em escala semi-industrial. A ideia é estabelecer os parâmetros de produção em larga escala em termos de rendimento, custo, volume, consumo de energia e água. Os testes de produção de enzimas e quebra da celulose da cana-de-açúcar passarão a ser feitos em reatores de até 2001. A escala será ampliada cerca de 10 vezes, em relação à escala laboratorial. Isso vai permitir identificar gargalos do processo em condições operacionais parecidas com a da produção industrial.

José Geraldo Pradella acredita que realizar prospecção de bactérias e fungos na floresta, em vez de fazê-la nos canaviais, ampliará consideravelmente as chances de encontrar as enzimas ideais para o processo de produção do etanol celulósico. De acordo com estudos realizados por cientistas do Programa Biota, da Fundação de Apoio à Pesquisa de São Paulo. (Fapesp), o número de bactérias nas plantas cultivadas pode ser até 99% menor que o das plantas das florestas. Ou seja, na Amazônia, o material para investigação é imensamente maior.