Título: Opção multilateral do Brasil
Autor: Cavalcanti , Carlos A.
Fonte: Valor Econômico, 21/07/2008, Opinião, p. A14

A opção do Brasil em privilegiar a conclusão da Rodada Doha da Organização Mundial do Comércio (OMC) não pode ser atribuída a viés ideológico presente em nossa política externa e comercial. Há duas razões fundamentais para a negociação multilateral ser considerada prioridade: os ganhos para o país serão amplos e significativos; e tais resultados não poderiam ser obtidos em negociações bilaterais ou regionais, inclusive com os Estados Unidos e a União Européia.

A diplomacia comercial brasileira tornou-se arena de polêmicas. São constantes as críticas, oriundas do confronto partidário, que consideram proposital o Itamaraty ter renunciado à negociação da Alca e ao acordo entre o Mercosul e a União Européia. Num claro exagero, mais recentemente tem-se embaralhado a negociação para a conclusão da Rodada de Doha com a efetivação do painel do algodão, vencido pelo Brasil na OMC, e a reforma do Conselho de Segurança da ONU. A verdade da política comercial, no entanto, é outra.

A Alca foi lançada, em 1994, como uma entre 23 ações aprovadas na Cúpula das Américas, que pretendia revigorar o sistema inter-americano após o fim da Guerra Fria. O governo Clinton relutou em inclui-la na agenda regional porque havia consumido importante capital político na aprovação do Nafta e os acordos da Rodada Uruguai do Gatt. Deve-se à disposição de muitos países latino-americanos sua inclusão entre as metas da cúpula, pois temiam ter seu acesso ao mercado norte-americano erodido pelas preferências concedidas ao México.

Nesse início de negociação, o governo Fernando Henrique Cardoso movia-se com grande cautela, diante do diagnóstico de desmonte do parque industrial brasileiro alimentado por parte do lobby empresarial. Entre 1994 e 2001, o Itamaraty trabalhou ativamente na "dilatação dos prazos", protelando abertamente as negociações. Apenas na cúpula de 2001, no Canadá, o então presidente do Brasil estabeleceu as condições da participação ativa do país na Alca. Foi enfático ao afirmar que sem abertura dos mercados agrícolas, eliminação de barreiras sanitárias e fitossanitárias e regras de defesa comercial não haveria razão em prosseguir na negociação.

Dessa forma, Fernando Henrique pôs em xeque a posição dos Estados Unidos, que não admitiam tais reformas em sua legislação doméstica. Os norte-americanos firmaram posição de que esses assuntos só poderiam ser tratados no âmbito multilateral. Quando o governo Lula assumiu, em 2003, com clara antipatia pelo acordo, encontrou situação ainda pior. O governo Bush havia negociado em troca do TPA de 2002, concessões aos principais grupos protecionistas: os produtores agrícolas, com aumento de subsídios na Farm Bill e o lobby do aço, que mereceu salvaguardas claramente ilegais.

A proposta do ministro Amorim de ordenar a negociação em "três trilhos", distribuindo os vários temas nos âmbitos multilateral (OMC), regional (Alca) e bilateral (Mercosul-Estados Unidos), foi a maneira correta de preservar os interesses do Brasil. Se os Estados Unidos só estavam dispostos a negociar a abertura de seu mercado agrícola e novas regras sobre antidumping na OMC, o Brasil faria o mesmo com temas caros aos norte-americanos, como serviços, investimentos e propriedade intelectual. Tratava-se de jogo diplomático pertinente.

-------------------------------------------------------------------------------- Não é a abertura resultante de Doha que atrapalhará a indústria, mas a falta de uma boa política macroeconômica --------------------------------------------------------------------------------

Efeito colateral desse processo foi sentido na negociação entre o Mercosul e a União Européia. Estes apenas aceitavam tratar o tema agrícola na OMC. Posição sintetizada pelo argumento de que dispunham de "bolso único" para pagar a conta da abertura de seu mercado. Foi sem surpresa que o então comissário de comércio europeu, Pascal Lamy, passasse à defesa, também ele, da priorização de Doha.

Coube ao Itamaraty estabelecer a OMC como palco principal, trabalhando na hábil constituição do G-20, exercício de sofisticada diplomacia que, embora também composto por países protecionistas como China e Índia, atuou na defesa dos interesses ofensivos do agronegócio brasileiro. Liderando o G-20, o Brasil logrou com sucesso três objetivos: colocar a negociação agrícola como o motor da rodada; estabelecer equilíbrio entre as concessões na área agrícola e industrial; e se credenciar como o mais importante interlocutor entre os países em desenvolvimento, ocupando lugar no centro do processo decisório. Como conseqüência, o Mercosul poderá obter ganhos concretos com o acordo de Doha.

Os subsídios às exportações de produtos agrícolas serão eliminados até 2013. Os subsídios de apoio à produção doméstica de grãos e outras culturas terão efetiva regulação internacional, inclusive por tipo de produto. O agronegócio ampliará seu acesso aos grandes mercados dos países desenvolvidos e emergentes. Restrições importantes serão mantidas, mas seria pura demagogia não reconhecer as reduções nas tarifas de importação que protegem tais mercados. Pior seria argumentar que, graças ao aumento do preço das commodities, o acordo perdeu importância, pois isso é desconhecer as oscilações desse mercado.

Da perspectiva da indústria de transformação, o acordo, se concluído, permitirá equilíbrio entre interesses ofensivos e defensivos. Haverá eliminação dos picos tarifários que incidem sobre alguns produtos industriais vendidos aos países desenvolvidos e grande parte dos interesses defensivos da indústria do Mercosul será resguardada pelas flexibilidades previstas nos textos ora em discussão: 13% ou 14% de todo o universo tarifário sofrerá metade do corte previsto. Não é a abertura resultante da conclusão da negociação multilateral que atrapalhará o desenvolvimento da indústria, mas a constante falta de uma política macroeconômica articulada com as necessidades da produção que favoreça o comércio exterior. Basta olhar o exemplo da China.

Finalmente, é preciso ter claro que a reforma decorrente da conclusão de Doha é precondição para destravar a agenda comercial bilateral do Mercosul. Somente o estabelecimento de aparato legal de âmbito internacional para disciplinar o apoio estatal à produção agrícola e as bases de seu comércio poderá desencadear amplo programa de acordos comerciais, inclusive, mas não apenas, com a União Européia e os Estados Unidos. A menos que aceitemos liberalizar o comércio dos produtos que mais interessam aos outros e renunciemos à parte mais significativa do nosso interesse econômico.

Toda crítica é saudável, mas no caso específico de Doha, atacar a posição do governo brasileiro com base em interesses particulares, qualificando-a sob o manto da ideologia, é cometer hara-kiri em nossa política comercial. Concluir Doha não é tarefa apenas do presidente Lula ou do chanceler Celso Amorim. É obrigação do Brasil com o seu futuro.

Carlos A. Cavalcanti é industrial e vice-presidente do Conselho Superior de Comércio Exterior (COSCEX) da FIESP.