Título: Mesmo abatida, Farc se mantêm vivas
Autor: Souza , Marcos de Moura
Fonte: Valor Econômico, 21/07/2008, Especial, p. A16
Na entrada da pequena cidade não uma há placa de boas-vindas. Os visitantes são recebidos por um aviso e uma ordem escritos numa grande faixa branca estendida na margem direita da estrada: "Algeciras y Ejercito Nacional. Unidos contra El terrorismo. Denuncie".
A seis horas ao sul de Bogotá, o município de Algeciras tinha, uma semana atrás, sua principal via de acesso dominada pela presença ostensiva do Exército da Colômbia. Soldados com fuzis a tiracolo davam ordens para que motoristas parassem e apresentassem os documentos. Alguns carros eram revistados.
Mas passando desse ponto, a vida parece normal. Nada de patrulhas, nada de revistas, nada que indicasse qualquer sombra daquilo que o Exército denomina terrorismo. O que se tem são carros velhos, carroças, ônibus improvisados para levar passageiros na carroceria, famílias com roupas de missa, crianças por todo lado, mulheres na feira, música no alto-falante da praça. Uma normalidade de fachada.
Algeciras é um entre os muitos municípios do país onde - apesar das derrotas recentes impostas pelo governo do presidente Álvaro Uribe - as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) seguem exercendo influência na vida cotidiana da população, controlando horários do comércio, cobrando "impostos" para financiar a guerrilha e ditando regras de convivência.
"Se dizem que eles já se acabaram, é mentira", diz o sitiante Amin Devia, de 47 anos, sentado com a reportagem num bar no centrinho da cidade, entre um gole e outro de cerveja Poker. "Eles não estão mais pelas ruas uniformizados como antes. Mas os milicianos estão aqui em todo lugar. O governo, para acabar com eles, necessita de muitos anos. Eles estão muito enraizados."
"Eles" são as Farc. Mais precisamente os homens da Frente Teófilo Forero, o destacamento da guerrilha que atua na região de Algeciras e em outros municípios do departamento de Huila. A Teófilo, comandada por um guerrilheiro de codinome Oscar Paisa, ostenta a fama de ser uma das poucas frentes com autonomia para atuar em qualquer ponto do país, dado o suposto preparo dos combatentes para as ações militares. Para o governo, trata-se de uma das frentes mais sanguinárias das Farc.
Os milicianos a quem Devia se refere são guerrilheiros que não portam armas, usam trajes civis e que circulam pela cidade fazendo um trabalho que se define como de inteligência: acompanhar a movimentação militar, a entrada de estranhos e o comportamento dos moradores, cobrar "impostos" e fazer periodicamente divulgação de idéias políticas em reuniões furtivas na cidade e no campo.
"Estamos aqui com dois governos: Uribe e a guerrilha", prossegue Devia, um homem afável, de mãos calejadas e unhas sujas, dono de três hectares onde planta café. Desses dois governos, quem manda mais? Devia sorri e diz que há algumas regras claras ditadas pela guerrilha e que todos por aqui sabem de cor e respeitam. Exemplos: roubos de gado ou de quaisquer outros bens e brigas de rua não são permitidos pela guerrilha; viciados em drogas e prostituição tampouco. Maledicências (ou "chismes", como dizem por aqui) também estão proibidas. As sanções mais leves variam de admoestações públicas e multas até endurecer para trabalhos forçados, expulsão da cidade ou a morte.
No povoado vizinho ao centro de Algeciras, batizado com o convidativo porém enganoso nome de El Paraíso, don José, dono de um bar que naquele domingo, 13 de julho, estava cheio de vaqueiros e camponeses, dá mais detalhes sobre as leis das Farc que regem a rotina local.
"As regras de convivência mandam o comércio fechar às 21h durante a semana. No sábado e no domingo, podemos ir até a meia-noite. A multa para quem brigar na rua é de 500 mil pesos [pouco menos de US$ 300], ou então a guerrilha manda as pessoas ficarem dois meses em trabalho forçado. Quem tem mais de 20 milhões de pesos [cerca de US$ 11,8 mil] têm de pagar um imposto para eles."
José (que preferiu ser identificado apenas pelo primeiro nome), hoje com 52 anos, esteve preso por seis meses em 2003 por suspeita de ser aliado, colaborador ou próximo de um dos comandantes da Frente Teófilo Forero, um guerrilheiro de nome Valbuena. Nada foi provado e ele foi liberado.
Assim como Devia, ele não leva muito a sério os diagnósticos e declarações do governo Uribe, e de muitos especialistas em segurança da Colômbia e de outros países, que sustentam que as Farc estão a ponto de se esfacelar. "Eu vivo há 40 anos em zonas de guerrilha. Eles seguem fortes, eles é que mandam aqui. Vá até um acampamento deles, eles são muito, muito fortes. O governo não consegue derrotá-los, nem em 20 anos."
Da manhã até o início da noite daquele domingo, em Algeciras e El Paraíso, a reportagem ouviu relatos semelhantes: que as Farc se retraíram diante da ofensiva militar, que eles não dão mais as caras uniformizados pelas ruas, mas que pelo menos nessas bandas continuam atuando como um misto de autoridade legislativa, judiciária e fiscal. Como o Estado.
São relatos contrastantes com o discurso adotado nas últimas semanas pelo governo colombiano. Para o presidente Uribe e membros de seu governo, após a libertação de Ingrid Betancourt e de outros 14 reféns, após as mortes este ano de líderes importantes das Farc - como Raúl Reyes e Manuel Marulanda - e após uma sucessão de ações militares e de inteligência que têm minado a capacidade de comunicação entre as frentes e o secretariado, chegou o momento de as Farc aceitarem uma negociação para desmobilização de seus combatentes e para colocar fim a uma insurgência que dura 44 anos.
"O que ocorre é que não há só um conflito armado. Há um conflito social, político, cultural e estrutural", diz o cientista político Ariel Ávila, coordenador do Observatório do Conflito Armado da organização não-governamental Corporación Nuevo Arco Iris. Ele e a socióloga Andrea Fernanda Guzmán Muñoz, sub-diretora da área de direitos humanos da Huipaz, outra ONG que atua na região, acompanharam o Valor na visita.
Algeciras e El Paraíso, segundo relatos ouvidos pela reportagem, desempenham um papel muito particular para a estrutura de operação das Farc na região: servem como espécie centros de arrecadação de "impostos", "cotas" ou "aportes" que comerciantes, donos de terra um pouco mais endinheirados e criadores de gado são obrigados a pagar à guerrilha. Os pagamentos, segundo don José, são feitos sem data nem dia marcados, mas com freqüência.
As extorsões são uma das formas de financiamento das Farc na região. Aparentemente muito mais usual do que seqüestros. Em Huila, não existem plantios significativos de coca, mas sim áreas de cultivo de papoula - matéria-prima para a heroína. Sobre esses cultivos, as Farc também cobram "pedágios" para fortalecer seu caixa.
Essa cobrança parece fazer tão parte da vida local que nenhuma das sete pessoas entrevistadas se referiu à prática como "extorsão". "Isso já está 'legalizado'. Em troca do pagamento, eles cuidam dos bens das pessoas e os protegem da delinqüência comum", conta Alejandro, um ex-vereador na casa dos 50 anos que recebeu a reportagem em Algeciras. Alejandro é dono de um sítio onde planta frutas e mantém um rebanho de gado. "Eles são uma instituição dentro da instituição do Estado", diz Alejandro, que pediu para ser identificado com um nome fictício, alegando que temia sofrer algum tipo de retaliação do governo.
O problema para Algeciras, diz o ex-vereador, é que o Estado por aqui se mostra quase que exclusivamente pela via militar, pela presença do Exército. Essa presença militar, diz ele, oscila de tempos em tempos, com mais ou menos homens, mais ou menos ações, mais ou menos sinais de quem dá as cartas e detém o monopólio da força. "Enquanto isso, a guerrilha está sempre aqui e mantém regras que todos sabem quais são."
Nas conversas com o Valor, os entrevistados mostraram uma mescla de lealdade, resignação, adaptação e respeito temeroso à ordem estabelecida pela guerrilha. Algo que faz lembrar o tipo de relação entre moradores de favelas brasileiras e grupos de narcotraficantes que atuam nessas áreas.
Aqui em Algeciras, essa relação provoca um certo desgaste para a imagem da cidade. Houve um tempo, diz Alejandro, em que o governo pagava salário dobrado aos servidores que trabalhavam na cidade, como compensação ao risco a que estavam expostos. Ainda hoje, os agricultores costumam ter dificuldades de obter crédito bancário também devido ao temor das instituições de que os recursos possam ser tomados pelas Farc, afirma Amin Devia.
A Defensoria Pública, com sede em Neiva, capital de Huila, divulgou recentemente um documento chamado Informe de Risco que adverte o governo para a situação de ameaça à qual estão expostos prefeitos, vereadores, defensores públicos regionais, deputados, secretários de governos em Algeciras e outras cidades do departamento, incluindo Neiva, onde 12 deputados foram mortos pelas Farc no ano passado - a guerrilha diz que os deputados, que então eram seus reféns, foram pegos em um fogo cruzado com o Exército.
Com o avanço militar e o esforço do governo Uribe de recuperar ao Estado o controle pleno das regiões ainda influenciadas pelas Farc, mesmo cidades como Algeciras vivem, segundo alguns moradores, uma mudança. Mas com efeitos colaterais estranhos.
"Nestes dias, aumentou o 'ladronismo'. Quando a guerrilha aparecia mais por aqui, isso não acontecia. As pessoas falam que a lei 'de arriba' [das montanhas, onde os guerrilheiros se escondem] era mais séria", diz Ana, viúva de um líder camponês de Algeciras, que esteve preso por nove meses em 2003 pelo crime de rebelião (o que significa integrar a guerrilha). Neste ano, ele foi morto numa suposta troca de tiros com soldados.
Mesmo com o Exército tentando marcar posição, muitos moradores ainda parecem relutar em apresentar queixas ou em pedir ajuda ou proteção aos militares. "As pessoas preferem recorrer às Farc porque, se você chama o Exército, vai ser visto como 'sapo' [um informante]", diz Diana, de 25 anos, que também esteve presa por 15 meses sob acusação de associação com a guerrilha. Diana - que aqui também é mencionada com nome fictício - agiria, segundo as alegações do governo e o testemunho de um guerrilheiro preso, como um primeiro contato entre a guerrilha e potenciais alvos de extorsão das Farc. O guerrilheiro acabou recuando da versão, e Diana foi solta em 2003.
Sua família vive um drama típico de regiões conflituosas, onde muitas vezes a população civil acaba sendo vítima dos dois lados em conflito. "Diziam que nós, nesta casa, abrigávamos as pessoas mais perigosas da guerrilha. Isso não era verdade. É que não tínhamos como fechar as portas. Vivíamos entre a espada e a parede", conta a mãe de Diana, que pediu para ser identificada como Rosa. "Minha filha foi presa, mas acabou saindo; um filho meu está detido faz seis anos acusado de rebelião, de ser escolta da guerrilha, mas o Exército nunca o flagrou com arma nem com rádio de comunicação. Fora isso, a guerrilha levou um outro filho meu há três anos, acredito que para recrutamento forçado."
Aos 50 anos, Rosa e o marido têm 3,5 hectares de café e yuca (mandioca). Dizem que não pagam imposto para a guerrilha, mas que vizinhos pagam. Rosa acredita que as Farc estejam chegando ao seu fim. "Eles estão mais retirados, mais debilitados e há deserções por aqui." Muito diferente de dois ou três anos atrás. "Eles estão no fim. A influência deles diminuiu." Mesmo assim, acrescenta, "os milicianos continuam vigiando todo mundo e a pressão psicológica é a mesma de sempre".
Ontem, milhões de colombianos saíram às ruas de Bogotá e de quase todas as cidades do país para cobrar a libertação dos reféns mantidos pela guerrilha e para cobrar o fim da atuação de grupos armados. Entre os slogans, estavam estampados dizeres nas camisetas que pediam: "Não mais sequestros, não mais mentiras, não mais mortes, não mais Farc".