Título: Lucro do petróleo pode espalhar Ceus e Cieps por todo o país
Autor: Totti , Paulo
Fonte: Valor Econômico, 31/07/2008, Especial, p. A4

Ainda não se sabe quanto de petróleo a Petrobras descobriu sob uma camada de sal a 280 quilômetros da costa brasileira no Atlântico Sul. Também não se sabe se haverá mudanças na legislação para adaptá-la à prodigalidade com que a natureza retribui o esforço de técnicos e pesquisadores da estatal. Muito se vai discutir também sobre se é justo a lei de royalties permitir, entre 5.500 municípios, que apenas nove deles, no Rio de Janeiro, fiquem com 62% da distribuição nacional da regalia. Começa, entretanto, a criar-se um consenso em torno do que deve ser feito com o resultado da exploração dessas ultragenerosas reservas.

O dinheiro irá preferencialmente para a educação pública fundamental, num projeto que associará experiências realizadas em países de culturas e sistemas econômicos distintos, como Noruega, Coréia do Sul, Cuba, com duas iniciativas autenticamente nacionais: os Cieps de Leonel Brizola, no Estado do Rio de Janeiro, e os Ceus de Marta Suplicy, na cidade de São Paulo. Não há uma diretriz definida para a utilização desses recursos, mas os senadores Tasso Jereissati (PSDB-CE) e Cristovam Buarque (PDT-DF) já apresentaram projeto de lei em que propõem a criação de um Fundo Nacional do Petróleo para Formação de Poupança e Desenvolvimento da Educação Básica (Funped). O fundo seria formado com 59,3% do lucro com o aproveitamento das recentes descobertas e, desses recursos, 60% seriam destinados à educação básica. O nome e a sigla do Funped serão obviamente mudados por falta de apelo de marketing e por causa do "n" antes do "p", erro de ortografia inconcebível num projeto educacional, mesmo se tratando de sigla. Mas o projeto está na comissão de infra-estrutura do Senado para o recebimento de emendas e se espera que, em torno dele, se harmonizem todas as tendências da Casa.

Ed Viggiani / Valor Piscina do Ceu Casa Blanca, na Vila das Belezas. A vizinhança pensava: "É tudo tão bonito, não deve ser para nós" Na execução do programa, a inspiração do horário integral, com alunos permanecendo na escola o dia inteiro, virá dos Centros Integrados de Educação Pública (Cieps). Dos Centros Educacionais Unificados (Ceus) virá o conceito de escola como pólo de convivência comunitária em regiões urbanas tão carentes de educação de qualidade quanto de entretenimento e atividades culturais e esportivas.

Confirmadas as previsões de que do fundo do mar jorrará dinheiro para investir no encaminhamento de soluções para as carências nacionais - educação básica em primeiro plano, sem descuidar do ensino médio e superior, com ênfase na inovação e na tecnologia de ponta -, desaparecerão os motivos da principal crítica que Cieps e Ceus atraem até hoje: seu alto custo e a falta de recursos para implementá-los. A educação, como o petróleo, é um ativo que se valoriza à medida que se torna mais necessário e o benefício do seu alto retorno justifica e recompensa o investimento para desenvolvê-lo.

A candidata à prefeitura do Rio, Jandira Feghali (PCdoB), segunda nas pesquisas, diz que o projeto pedagógico dos Cieps "foi perdido no tempo" e promete revivê-lo, abrir as escolas nos fins de semana para integração comunitária, restabelecer a permanente assistência à saúde, dotar a rede municipal de equipamentos de cultura, esporte e inclusão digital. "Nada em educação é tão caro quanto o alto custo de não fazer nada", diz.

Com maior ou menor entusiasmo, outros candidatos a prefeito do Rio elogiam os Cieps. Fernando Gabeira (PV-PSDB), diz que, por enquanto, está "na fase do pré-pré-sal", ou seja, ainda não há dinheiro para grandes vôos, mas pretende ampliar em uma hora os turnos atuais de apenas quatro horas diárias na maioria das escolas municipais e também a duração do ano letivo, de 175 para 200 dias, equiparando-as às escolas particulares (o calendário da secretaria da Educação indica que essa equiparação já existe).

A deputada federal Solange Amaral (DEM) diz que a educação em horário integral "é uma absoluta necessidade" a ser satisfeita até o fim do mandato, se eleita, "em estruturas que não precisam, necessariamente, ser as dos Cieps". O senador Marcelo Crivella (PRB), líder nas pesquisas, diz que o turno único será implantado primeiramente nas áreas mais carentes das zonas Norte e Oeste para, até 2012, chegar a todo o município. É o que pode ser feito no momento com recursos próprios (R$ 1,5 bilhão), royalties (R$ 135 milhões) e os atuais R$ 800 milhões do Fundeb. "Mas todo dinheiro novo será bem-vindo", diz Crivella.

Dos 515 Cieps que Brizola construiu, 316 ainda são administrados pela secretaria estadual de Educação e o restante foi municipalizado - na capital, são 101 os que passaram à prefeitura; o Estado conserva 31. Os candidatos afirmam que não há necessidade de mais Cieps e nenhum deles, em período eleitoral, parece disposto a condená-los. Sincera ou não, essa unanimidade é explorada por outro candidato, o deputado estadual Paulo Ramos (PDT): "Brizola fez tanto pela educação que, 25 anos depois, os brizolões ainda atendem às necessidades do Rio."

O dinheiro da exploração dos novos campos de petróleo só entrará para os cofres do governo federal por volta de 2012. A disputa pela repartição desses ainda incalculáveis recursos, porém, já começou e desde agora se poderá visitar o que resta dos Cieps no Estado do Rio e acompanhar o evolução dos Ceus de São Paulo, para avaliar se a experiência tem realmente potencial para transformar o Brasil no primeiro país de economia emergente a usar a riqueza do petróleo na melhora das condições de vida de sua população.

O Valor visitou Cieps e Ceus e constatou que autoridades da área, professores e outros profissionais da educação, ex-alunos e moradores das comunidades que os hospedam consideram válida a experiência, com plenas condições de servir de modelo à educação básica brasileira no futuro. Existindo dinheiro para sustentá-los, gostariam todos de ver Ceus e Cieps espalhados pelo país - feitas as correções que o passar do tempo e as diferenças regionais impõem. "Unidade não significa uniformidade. A unidade pressupõe multiplicidade. A um centralismo estéril e odioso se opõem as condições geográficas do país e a necessidade de adaptação crescente da escola aos interesses e às exigências regionais", já proclamava o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, que Anísio Teixeira assinou em 1932, na companhia de educadores como Fernando de Azevedo, Afrânio Peixoto e Roquette Pinto e de intelectuais como Júlio de Mesquita Filho e Cecília Meirelles.

Secretário da Educação e Saúde no governo do udenista Otávio Mangabeira, na Bahia (1947-1951), Anísio Teixeira criou em 1950 a Escola Parque, no bairro da Liberdade, em Salvador, onde implantou o ensino em tempo integral, cuidados médicos e de higiene pessoal, educação artística (entre seus professores, Mário Cravo e Caribé) e "socialização, preparação para o trabalho e para a cidadania". Estas palavras constavam do ideário da escola baiana e foram repetidas até a exaustão pelos criadores dos Cieps - Darcy Ribeiro à frente, o executor mais brilhante e entusiasta das idéias de Anísio. Cida Perez, secretária municipal da Educação na época da criação dos Ceus, manteve o discurso em São Paulo. Experiências como as da solitária escola de Anísio, já incorporando a idéia de que " nova educação pede nova arquitetura" - daí a convocação de arquitetos como Oscar Niemeyer, no Rio, e Alexandre Delijaicov, André Takyia e Wanderley Azira, em São Paulo - repetiram-se isolada e esporadicamente pelo país, mas só no Rio e em São Paulo o conceito se transformou em atitude central de um governo estadual ou municipal.

Em dois mandatos (1983-1987 e 1991-1994), Brizola criou uma secretaria especial para cuidar dos Cieps e chegou a comprometer, durante dois anos, 80% do orçamento estadual no seu custeio e investimentos. Marta Suplicy (PT), ao sair da prefeitura de São Paulo, deixou 21 Ceus construídos. Seu sucessor, Gilberto Kassab (DEM), candidato à reeleição, inaugurou 12 outros Ceus e tem 13 em obras para entrega até dezembro. O ex-governador Geraldo Alckmin (PSDB) assegura que, se o eleito for ele, nada vai mudar. Já Kassab afirma que, reeleito, os Ceus terão turno de sete horas até o fim do futuro mandato. E Marta acrescenta que sua eleição é a garantia de que os Ceus não serão desvirtuados.

-------------------------------------------------------------------------------- Com dinheiro para investimento e custeio desaparecem as razões para condenar projetos como Ceus e Cieps --------------------------------------------------------------------------------

Cada Ceu tem um custo estimado em R$ 17 milhões em obras civis e mais R$ 2 milhões para equipá-lo. No Rio, não há dados sobre quanto custaria hoje a construção de um Ciep, pois, há duas décadas, os governadores ou prefeitos que se sucederam parecem ter desistido de erguer escolas que os cariocas continuariam insistentemente a chamar pelo apelido: "brizolões". Sabe-se, porém, quanto custa à prefeitura a manutenção do Ciep nº 001 Tancredo Neves, o mais antigo: R$ 265,39 por aluno/ano. A escola convencional custa pouco menos que a metade: R$ 131,27.

Com pequenas adaptações no projeto - as creches para crianças de zero a três anos estão agora no andar térreo e a quadra de esportes com piso de tábuas não está mais em cima do teatro -, em São Paulo a administração Kassab prossegue a política de sua antecessora, mas não dá a Marta Suplicy, que os implantou, o crédito pelos Ceus. Numa revisão histórica assaz criativa, o mérito pela idéia dos Ceus, segundo assessores do prefeito, pertenceria a Mario de Andrade, poeta e romancista que morreu em 1945 aos 52 anos, depois de ter exercido, entre outros cargos, a direção do Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo (1935-37), onde defendeu que as atividades escolares incluíssem música, folclore e esportes.

Com origem e objetivos comuns, Cieps e Ceus têm, entretanto, diferenças. Os Ceus são um amplo centro comunitário instalado em cerca de 14 mil metros quadrados cada um, que hospeda não uma, mas três escolas - creche (até três anos), educação infantil (de três a cinco anos) e fundamental (da primeira à nona série). Há uma gestora (ou gestor) para o Ceu e uma diretora (diretor) para cada uma das escolas. As diretoras cuidam do currículo escolar, a gestora de todas as outras atividades. Ao contrário dos Cieps originais, os Ceus não têm tempo integral e a carga pedagógica é exatamente igual à das demais escolas da rede.

Criados 20 anos depois de seus primos do Rio, a integração escola/comunidade é o traço característico dos Ceus. Neles tudo parece - e realmente está - à disposição dos alunos, de sua família e da vizinhança: piscinas aquecidas (semi-olímpica, média, infantil), teatro de 450 lugares, com quatro camarins e acústica protegida da habitual algazarra dos corredores - o pianista Arthur Moreira Lima surpreendeu-se: "Mas isto é um teatro de verdade!" -, sala das aulas de balé com grandes barras e espelhos, modernos mesmo para um corpo de baile profissional, quadra poliesportiva, biblioteca de cinco mil a dez mil livros, computadores, bancos nos jardins à sombra das árvores, instalações bem conservadas. Exemplo de zelo: às 11 horas de uma sexta-feira, após barulhento e movimentado recreio, os banheiros estão limpos e cheirosos no Ceu Rosa da China, bairro de Sapopemba, zona Leste, divisa com Santo André.

"No começo", conta Marlene Zilig, gestora do Ceu Casa Blanca, na Vila das Belezas, entre os bairros de M'Boi Mirim e Campo Limpo, Zona Sul, "as pessoas da comunidade tinham receio de entrar no Ceu. Ficavam olhando pelas grades. Alguns não se arriscavam a passar pelo portão sempre aberto e pulavam o muro. Pensavam: 'É tudo tão bonito, não deve ser para nós'."

A gestora Lucimeire de Lima Luiz, do Ceu Jaçanã, Zona Norte, diz que os adolescentes da vizinhança tinham duas razões para resistir à piscina na época da inauguração do Ceu, já no governo Kassab. "Quase ninguém tinha maiô, pois não iam à praia ou freqüentavam piscinas. Algumas tinham vergonha de mostrar o corpo..." Hoje, enquanto a criança está na aula de inglês, sua mãe ou a avó faz hidroginástica na piscina, ou está no curso de culinária. Em 1º de agosto de 2003, quando inaugurou o primeiro Ceu, o Jambeiro, no bairro de Guaianazes, zona Leste, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva discursou: "Marta, você inaugura hoje não só uma escola, você inaugura um padrão de decência, um novo jeito de tratar as pessoas neste país." Nos fins de semana, entre 1,5 mil e 2 mil moradores da região freqüentam outro Ceu, o Casa Blanca, como se estivessem em um clube, o seu clube.

"Isso acontece em todos os Ceus. Quanto mais humilde for a população ao seu redor, maior a afluência", diz Celso Seabra Santiago, assessor da Secretaria Municipal de Educação para projetos especiais. O Casa Blanca tem 256 crianças em sua creche, 551 na pré-escola e 883 no ensino fundamental, um total de 1.690 alunos. Esta é a média de matrículas na rede Ceus. Os Cieps, em instalações menores, abrigam em torno de 600 alunos.

Uma das freqüentadoras da biblioteca do Ceu Jaçanã é Raiane, 9 anos, seis irmãos, aluna de uma escola da rede estadual das imediações. Os pais têm uma barraca de pastéis nas feiras do bairro - "o pai quase não dorme; e minha mãe, coitada, tem úlcera varicosa", diz Raiane, menos interessada nas perguntas do repórter do que na antologia de Fernando Pessoa, que lia. Raiane diz que chegou tarde e preferiu vir para a biblioteca do Ceu. Ela volta a prestar atenção no livro. Sem emitir som, seus lábios acompanham a cadência dos versos. Faz uma pausa, olha para o teto como a degustar ou a tentar entender o que lê: "De tanto ser, só tenho alma./Quem tem alma não a tem calma". Raiane é vista com freqüência na biblioteca do Ceu e dá a impressão de preferir o encontro matinal com Fernando Pessoa a uma aborrecida aula na escola convencional. "Meu medo", diz uma professora de Ceu que não quis se identificar, "é que, com o tempo e a mudança de administrações, desapareça essa atmosfera linda, integradora, dos Ceus. E que só restem os prédios, como aconteceu com os Cieps no Rio".

Cieps e Ceus não tiveram especial destaque no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) publicado pelo Ministério da Educação no mês passado. Em São Paulo, a Secretaria de Educação do município simplesmente impugnou os resultados por considerá-los errados e, no Rio, sete Cieps da rede estadual figuraram entre as 20 piores quartas séries das escolas públicas no Estado.

A secretária estadual de Educação, Teresa Porto, considera exagero "e certa má vontade" culpar os Cieps pelo fato de algumas escolas com essa denominação terem obtido nota baixa no Ideb. "O Ciep, como foi concebido, não teve continuidade nos governos seguintes. É impossível, hoje, avaliá-lo isoladamente", diz a secretária, no cargo há cinco meses. Teresa afirma que, nos últimos anos, a preocupação nacional foi a universalização do ensino. "A qualidade não acompanhou a universalização", diz.

A preocupação com estatísticas é uma das causas do abandono do turno único nos "brizolões"; em São Paulo, há o "turno da fome", das 11 às 15 horas; criaram-se dois, três turnos e o número de matrículas dobrou ou triplicou. Teresa revela ser "fã de Darcy Ribeiro desde a adolescência". Seu pai, Carlos Guimarães, foi líder do PDT na Assembléia e na sua casa há uma foto dela com o pai, com Brizola, com o ex-marido (Tito Riff, secretário do Planejamento nos governos do PDT) e uma picanha assando no espeto. Para Teresa, os Cieps são experiência valiosa que necessita de "criteriosa revisão crítica e atualização": tempo integral, instalações condignas, professores qualificados e contratos de gestão.

Depois de anos de abandono, os Cieps da Prefeitura e do Estado do Rio iniciaram o ano de 2008 com pintura nova, conserto de goteiras, capina do pátio. Alguns até receberam tratamento acústico para reparar sério defeito de origem: por não chegarem ao teto, as paredes divisórias permitiam o vazamento de som de uma sala para outra. As novidades podem ser influência de tempos eleitorais. Ou antevisão da exploração do pré-sal.