Título: De impasse em impasse, Doha chega ao fracasso
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 31/07/2008, Opinião, p. A18

A Rodada Doha fracassou e agora há pouco a fazer diante da previsível intensificação das disputas comerciais e do recrudescimento do protecionismo nos mercados em retração, afetados pela desaceleração das economias dos EUA e União Européia. As perspectivas de retomada das negociações globais no curto prazo são remotas. Em uma rodada sob auspícios do "desenvolvimento", os países ricos mostraram-se intransigentes no que mais interessava ao resto do mundo - a abertura nos mercados agrícolas. Propostas insatisfatórias levaram a contrapartidas insatisfatórias e, quando parecia que todos se tinham conformado com pequenas concessões, houve o colapso, patrocinado por EUA, China e Índia.

A criação de salvaguardas especiais em caso de aumento das importações foi incluída na reunião de Hong Kong e, na época, houve alertas de que ela seria mais um impasse com data marcada na longa série de obstáculos que a rodada enfrentava. Ela foi o estopim imediato do fracasso de Doha e classificá-la de questão menor é incorreto. É uma aberração em uma negociação para liberalizar mercados que dois dos países de maior crescimento no mundo decidam limites estreitos para importações (no caso da Índia e aliados); ou que não vão nem baixar tarifas, nem elevar cotas para alguns produtos agrícolas (caso da China).

Os EUA não tinham um interesse genuíno em um acordo global. O presidente George W. Bush não tem mais autoridade negociadora e tornou-se impossível obter uma prorrogação dela diante de seu desprestígio e da maioria democrata na Câmara e no Senado. Além disso, em um período eleitoral onde a maré é democrata e o principal candidato do partido, Barack Obama, promete rever acordos comerciais, não havia qualquer expectativa de negociação para os representantes americanos. Eles estavam lá para impedir grandes concessões, fizeram poucas muito tarde e, nos últimos dias, brandiram a bandeira do livre mercado, que não praticam, para dinamitar a reunião. Para isso, usaram o belo pretexto dado pela China e pela Índia, que também não estavam interessadas em ceder quase nada.

O Brasil lutou contra os subsídios até onde conseguiu e preferiu um acordo bastante modesto a sair de Genebra sem nada. A ruptura com o G-20 foi uma mudança de rota pragmática e só surpreendeu porque antes parecia prevalecer o fraseado ideológico da "nova geografia comercial" e fortalecimento do eixo Sul-Sul. Era óbvio, e essa foi uma das lições de Doha, que Índia e China são também competidores importantes do Brasil, uma distinção que a diplomacia brasileira deixou para a última hora, depois que essa ampla frente formada contra os subsídios agrícolas dos países ricos já tinha dado tudo o que podia dar.

Uma das certezas com o fiasco de Doha é que todos perdem com isso. Os países em desenvolvimento perdem mais, porque se tratava de cobrar a conta da Rodada Uruguai, onde as tarifas industriais foram rebaixadas, mas o protecionismo agrícola manteve-se de pé. As tarifas médias para manufaturados caíram de 40% em 1947 para 5% antes de Doha, e a única frente de batalha benéfica para os países em desenvolvimento era o desmonte da rede de barreiras agrícolas.

Os países ricos não obtiveram o que queriam, mas isso é menos vital para eles, já que dispõem como atenuante de vasta e crescente gama de acordos bilaterais que lhes são vantajosos. Essa é uma das trilhas que serão mais percorridas agora. Ao fim da Rodada Uruguai, em 1994, havia 80 acordos bilaterais e regionais. Em 2010, segundo a Organização Mundial do Comércio, eles chegarão a 400.

O Brasil deu prioridade à Rodada Doha e esteve certo. Só ela poderia aparar as arestas das barreiras comerciais e criar regras confiáveis e até certo ponto equânimes de liberalização de mercados. A diplomacia brasileira empenhou-se pouco em acordos bilaterais, embora no caso da negociação com a UE houvesse mútuo acordo a respeito da dependência recíproca dos resultados da rodada global. O país ficou sem opções e o caminho natural é retomar as conversas com a UE. Neste caso, já se sabe muito bem quais são os obstáculos e as zonas de convergência. O Brasil precisa correr para recuperar o atraso em que as circunstâncias e viés ideológico o colocaram na arena comercial.