Título: Por uma substituição de importações agrícolas
Autor: Silva , José Graziano
Fonte: Valor Econômico, 28/07/2008, Opinião, p. A10

Os preços de alguns produtos já começaram a cair, mas a previsão é que os alimentos ainda continuem caros no futuro próximo. Os dados mais recentes indicam a estabilização dos preços das commodities agrícolas em um patamar muito mais elevado que dos anos recentes. Até agora, temos visto apenas a confirmação dos riscos associados à alta dos preços dos alimentos. Segundo a FAO, o aumento fez com que mais 50 milhões de pessoas deixassem de se alimentar adequadamente em 2007, somando-se aos 860 milhões de pessoas com fome existentes no mundo.

Há várias propostas para combater a atual crise. Recuperar o investimento em agricultura para aumentar a produção é a principal delas. Mas apenas ter preços mais altos dos alimentos não é estímulo suficiente para garantir isso.

Primeiro, porque cabe relembrar que, apesar do aumento expressivo e rápido, os preços agrícolas apenas se recuperaram dos níveis deprimidos dos anos 80. Segundo José Ocampo, ex-secretário-executivo da Cepal, o atual boom das commodities é mais um boom de preços de produtos minerais e do petróleo que agrícolas. A maioria dos produtos típicos da agricultura tropical - café, açúcar, chá e algodão para citar alguns - continuam com preços reais abaixo dos anos 70.

Segundo, há que se considerar também o atual aumento dos custos de produção e de transporte, que não param de subir, acompanhando os preços do petróleo. De acordo com o Observatório da Fome na América Latina e Caribe (www.rlc.fao.org/iniciativa/pdf/bolobs1.pdf), criado pelo Escritório Regional da FAO para acompanhar a situação alimentar e nutricional na região, os preços dos fertilizantes - que em boa parte são produtos petroquímicos - subiram mais que os preços de muitos alimentos. Se a produção encarece, plantar se torna menos rentável. No fundo, esse fator foi a causa estrutural da atual crise.

No caso brasileiro, embora o atual governo venha ampliando suas políticas de apoio à produção agrícola, ainda há muito para avançar na questão dos insumos. Grande parte dos fertilizantes continua a ser importada, criando dependência de um mercado fortemente oligopolizado e dominado por poucas empresas transnacionais.

Poucos países conseguiram aumentar significativamente sua produção agropecuária dentro deste cenário difícil. O Brasil é um deles. Em recente debate no Escritório Regional da FAO, Martin Piñeiro, um destacado economista latino-americano, mostrou as mudanças radicais operadas no âmbito do comércio internacional. Analisando os dados entre 1992/94 e 2002/04, período anterior à atual subida de preços, constatou que as exportações agrícolas líquidas dos EUA caíram de US$ 20 bilhões para US$ 6 bilhões; e que a China passou de exportador a importador líquido de produtos agrícolas nesse período. O espaço aberto foi ocupado pelo Brasil, Argentina, Austrália e Nova Zelândia, que passaram então a responder por cerca de 90% das exportações agrícolas líquidas mundiais.

-------------------------------------------------------------------------------- O Brasil poderia substituir parcialmente o trigo por produtos facilmente produzidos no país, como o milho e a mandioca --------------------------------------------------------------------------------

A partir de 2002/04, quando se iniciou a atual alta de preços, os EUA continuaram a reduzir suas exportações agrícolas devido ao crescente uso interno do milho na produção de etanol. Já a China, outros países da Ásia (Japão, Coréia, Hong Kong) e a Federação Russa continuaram a aumentar suas importações, principalmente de grãos e carnes.

Esse novo espaço aberto no comércio mundial de produtos agrícolas pós-crise foi quase que totalmente ocupado por Brasil e Argentina. Já em 2006, os dois países respondiam por mais da metade do saldo comercial agrícola dos seis maiores grupos de produtos agropecuários comercializados no mundo (carne, lácteos, óleos vegetais, cereais, açúcar e café), cerca de US$ 30 bilhões. A maioria dos países do Mercosul também aumentou sua participação no comércio mundial, ainda que em proporções menores, consolidando o bloco como o atual grande exportador líquido do planeta.

No entanto, para se manter entre os principais exportadores agrícolas, o Brasil precisa reduzir sua dependência em insumos importados. Não é razoável deixar que milhões de produtores agropecuários envolvidos no esforço de alimentar o mundo fiquem à mercê dos interesses dos poucos grupos que dominam a produção e o comércio de fertilizantes e defensivos agropecuários em escala mundial. Sozinho, talvez o Brasil não tenha força para alterar essa correlação de forças oligopólicas, mas, juntos, os países do Mercosul poderiam fazê-lo, pelo peso que têm na produção de gás e petróleo e no consumo de fertilizantes e defensivos agropecuários. É uma nova janela de oportunidades que se abre para a integração regional latino-americana.

Esse também é o momento para muitos países tentarem reduzir sua dependência de alimentos importados. Isso vale também para o Brasil, que poderia substituir parcialmente o trigo por produtos facilmente produzidos no país, como o milho e a mandioca. No Peru, no marco do Ano Internacional da Batata, o governo recentemente lançou o programa "Papa Pan" (Pão de Batata), para incentivar o consumo deste tubérculo originário da região andina.

A substituição de produtos pode ser induzida por programas de educação alimentar e nutricional, uma política que tem sido pouco acionada na atual crise, mas que é fundamental para enfrentar a alta dos preços dos alimentos no curto prazo. O tema hoje está disperso por quatro grandes ministérios (Agricultura, Desenvolvimento Social, Educação e Saúde). Uma institucionalidade mais descentralizada seria benéfica, já que os padrões alimentares do brasileiro variam de acordo com a cultura e a localização geográfica. Também possibilitaria uma melhor articulação com os programas de defesa do consumidor (Procon), que também se ocupam da qualidade dos alimentos.

A descentralização da política de educação alimentar também facilitaria a coordenação com a rede escolar para aproveitar melhor os alimentos característicos de cada lugar e incentivar a compra e o consumo de produtos locais. O governo brasileiro já trabalha nesse sentido através do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), mas o programa precisa ser ampliado para dar conta das compras para a merenda escolar. Apoiar os pequenos produtores é, ao mesmo tempo, uma oportunidade de aumentar a disponibilidade local de alimentos e tirar milhões de pessoas da pobreza e da insegurança alimentar.

José Graziano Da Silva é representante regional da FAO para América Latina e Caribe.