Título: Milagre econômico pára trânsito em Lima
Autor: Saccomandi , Humberto
Fonte: Valor Econômico, 28/07/2008, Especial, p. A12

O trânsito em Lima é normalmente tenso. Se você parar no semáforo vermelho, é provável que os carros atrás comecem a buzinar. A preferência é sempre do motorista mais ousado. Dar passagem a pedestre, nem pensar. Nos últimos meses, trafegar pela capital do Peru exige ainda mais paciência. A cidade está em obras. Várias ruas e avenidas estão sendo recapeadas ao mesmo tempo. Calçadas e canteiros estão sendo refeitos. Em muitos casos não há aviso prévio sobre o início das obras nem indicação de desvios. Mesmo motoristas experientes são surpreendidos e sofrem para reencontrar o caminho, em meio aos congestionamentos. Tudo isso, porém, é suportado pelos limenhos com resignação: é o efeito colateral do milagre econômico peruano.

Os números impressionam. O Peru é o país que mais cresce na América do Sul, 9% em 2007, com previsão de 8% este ano. Sua inflação foi a mais baixa no ano passado, 1,8%, e ainda agora está abaixo da média da região. O governo tem superávit fiscal, mesmo com uma carga fiscal de apenas 19% do PIB (contra cerca de 37% no Brasil). Beneficiado pelo boom de commodities, as exportações dispararam, e o comércio exterior é amplamente superavitário. O país obteve o grau de investimento em abril, um pouco antes do Brasil. O investimento direto estrangeiro, de US$ 5,3 bilhões em 2007, foi quase igual ao recebido pela Argentina, a segunda maior economia da região.

Esse crescimento é fruto de vários fatores: uma política econômica pró-negócios, com forte abertura comercial e de investimentos, que vem de mais de dez anos, mantida já por quatro governos consecutivos; relativa estabilidade política e jurídica; alta dos preços das commodities; e, desde o ano passado, um forte aumento da demanda interna.

O modelo a ser desenhado começou ainda nos governos de Alberto Fujimori (presidente de 1990 a 2000), que derrotou a guerrilha Sendero Luminoso e iniciou um amplo programa de privatizações e abertura da economia, baseado no chamado Consenso de Washington.

"Fujimori criou as bases para o processo [atual de desenvolvimento]", avalia Jorge Barata, presidente da filial peruana da construtora brasileira Odebrecht.

A crise e os escândalos que levaram à queda de Fujimori não abalaram a confiança no modelo, que foi mantido e aprofundado pelo presidentes Valentín Paniagua (interino), Alejandro Toledo e, agora, por Alan García, todos de partidos diferentes.

"Com Fujimori, fizemos uma abertura forte, a reforma de primeira geração. Toledo fez reformas de segunda geração, a parte institucional, de reforço de garantias. Hoje estamos fazendo as reformas de terceira geração, de agregar tecnologia e valor à produção", afirmou Antonio Castillo Garay, diretor da ProInversión, agência estatal de promoção de investimentos.

"O Peru segue mantendo a mesma política econômica desde Fujimori. É a política do FMI, do Banco Mundial, porque o poder econômico mudou no Peru. No Chile, ele é chileno, com participação estrangeira. No Peru, o poder econômico está com empresas estrangeiras, que não participam da política. O seu principal lobby é para que não mudem as regras do jogo. Alan García comprou isso", disse o economista Efraim Gonzales de Olarte, vice-reitor da Pontifícia Universidade Católica do Peru e não vinculado a nenhum partido.

"É um modelo econômico com pouca ou nenhuma regulamentação. É isso que interessa às empresas", avalia o historiador "de esquerda" Antonio Zapata, que apresenta um popular programa sobre história do Peru na TV.

Mas será que esse crescimento é sustentável? "Acreditamos que este ciclo de crescimento deve durar até 2015. Os booms de commodities costumam durar 15 anos, e este atual começou por volta de 2000. A China e a Índia ainda têm margem para crescer muito mais. Essa é uma tendência de longo prazo", diz Gonzales.

Para críticos do governo, o motor do crescimento é apenas a alta das commodities, que permite um nível maior de gasto social. "O Peru sempre foi um exportador de matéria-prima. Esse é só um novo ciclo em meio a essa reforma neoliberal", diz o historiador Zapata.

Mas Gonzales vê diferenças no ciclo atual. "Há mudanças. O crescimento não é só puxado por commodities. Os serviços estão crescendo, assim como o turismo. A construção civil nunca cresceu tanto. Há um boom de agroexportações de produtos de valor agregado. A expansão industrial está apenas começando, mas vai tomar forma, já que o câmbio baixo está permitindo a importação de bens de capital. E, o que é mais importante, a renda está crescendo internamente. Esse processo está sendo mais rápido do que se pensava."

"O primeiro impulso ao crescimento foi a demanda externa, mas desde 2007 é a demanda interna que explica o crescimento, especialmente a taxa de investimento, que pode chegar a 26% do PIB este ano. Com a demanda interna forte, país está protegido da crise externa", diz Castillo, da agência de promoção de investimentos.

No caso da demanda interna, a dinâmica é similar à do Brasil. "O crescimento significa mais receita fiscal, o que permite ampliar a infraestrutura de estradas, aeroportos, energia, fatores que vão incidir sobre o crescimento de longo prazo. Em alguns lugares do país faltava energia para o crescimento, faltavam estradas para transportar a produção", disse Gonzales.

O trânsito da capital peruana reflete isso. "A última vez que asfaltaram tantas ruas de Lima foi para a visita do [presidente francês] Charles de Gaulle, nos anos 50", ironizou o economista. De fato, desde os anos 50 e começo dos anos 60 o Peru não vivia um período tão longo e estável de crescimento.

Outra crítica recorrente, de que o modelo baseado em poucos produtos de exportação (leia texto ao lado) gera pouco emprego e renda, também está sendo contestada pelas ruas, literalmente. De janeiro a maio deste ano, a venda de carros novos subiu 81% no Peru, um recorde. Havia nove anos que as vendas não cresciam dois dígitos, segundo o jornal "El Comercio".

Desta vez, as obras na capital visam embelezar a cidade para a cúpula, em novembro, da Apec (Cooperação Econômica Ásia-Pacífico), grupo que reúne países banhados pelo Oceano Pacífico, em sua maioria nações asiáticas. Há enorme interesse no país, e não é à toa.

"A Ásia é um modelo para o Peru. Há muita relação com a China, o Japão e a Coréia", disse Gonzales. Foi na Ásia que o Peru buscou o modelo de ampla abertura a investimentos estrangeiros.

Esse olhar para o Pacífico, para a Ásia, fica evidente no "caos veicular" (como dizem os limenhos) da capital. O Peru vem é possivelmente o primeiro país da região invadido por carros de marcas chinesas.

O sucesso recente não ilude quanto às enormes dificuldades pela frente. "Há desafios grandes: o desenvolvimento tecnológico, o desenvolvimento territorial das regiões mais pobres e o desenvolvimento do capital humano, para tornar a economia mais competitiva. Esses são os três déficits principais do Peru", diz Castillo.

"A estabilidade chegou. O Peru é estável. O problema agora é a distribuição de renda", resume o economista Gonzales. Apesar do crescimento econômico, a desigualdade está aumentando no país, o que gera tensão social e protestos freqüentes, por vezes violentos. A demanda social seguirá em alta.

Esta é a primeira reportagem de uma série sobre a economia peruana