Título: Salvaguardas colocam Doha novamente em risco
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Fonte: Valor Econômico, 29/07/2008, Opinião, p. A12

As negociações da Rodada Doha avançaram e abriram perspectivas reais de um acordo - ainda não assegurado e pouco ambicioso. Os países desenvolvidos fizeram propostas para reduzir seus subsídios à exportação e domésticos consideradas sofríveis em outras circunstâncias e aceitáveis agora, diante da iminência de um colapso da rodada, que poria a perder sete anos de trabalhos. Estados Unidos e União Européia querem contrapartidas para suas concessões e enfrentam a dura oposição de China e Índia, que questionam o mecanismo de salvaguardas para produtos afetados por rápido aumento das importações. O Brasil foi o primeiro país a aceitar as concessões dos desenvolvidos, mas enfrenta oposição da Argentina no Mercosul. Para os argentinos, a abertura industrial foi longe demais - redução média de 54% nas tarifas - e a possibilidade de proteção para produtos sensíveis está abaixo do desejável - 14%, em vez dos 16% que consideram justo.

Um dos principais atores das negociações, o G-20, rachou exatamente diante dos objetivos para os quais foi criado - as questões agrícolas. O ministro do Comércio da Índia, Kamal Nath, mostra-se inflexível, agora com apoio da China e de outros países em desenvolvimento, para garantir salvaguardas especiais tão elásticas que virtualmente dão proteção total a uma gama de produtos agrícolas. A proposta agrícola estabelece que o mecanismo de salvaguarda poderia ser utilizado se as importações crescerem 40% em três anos, caso em que o país afetado poderá elevar em até 15 pontos percentuais, por determinado período, a proteção tarifária.

A Índia está levando a discussão de volta ao impasse. Ela aceita o limite de 10% para desatar defesa protecionista - o que é muito baixo, pois ele seria atingido se em dois anos as compras externas de determinado produto subissem 5% anuais, por exemplo. A China, por seu lado, foi mais agressiva: não quer cortar tarifa nem reduzir alíquotas dentro do esquema de cotas para açúcar, arroz, algodão, milho e trigo, já incluídos por ela entre "produtos especiais".

Para arrancar concessões, os EUA voltaram a soprar as trombetas do fracasso diante da posição chinesa. É possível que não se chegue a um acordo, pois as negociações comerciais se moveram desde o início em um terreno pantanoso. Era previsível que o mecanismo da salvaguarda especial, que foi incluído no desenrolar das negociações, acabaria por criar uma batalha aberta entre blocos e dentro dos próprios blocos de pressão. Pelo menos metade das exportações brasileiras é dirigida aos países emergentes e as condições apresentadas por China e Índia são nefastas ao comércio bilateral. Como grande exportadora, a China, por outro lado, havia pedido acordos industriais setoriais, que agora repudia, embora a proposta mencione que eles serão voluntários.

O Brasil encerrou sua missão no G-20 após julgar ter obtido algumas melhorias reais no processo. Embora os EUA só aceitem teto de subsídios agrícolas de US$ 14,5 bilhões - duas vezes acima do que praticou no último ano -, o país iniciou Doha falando em mais de US$ 20 bilhões. Os EUA aceitaram limitar os subsídios por produto, o que interessa ao Brasil. O agronegócio brasileiro, se o que foi acordado prevalecer, teria ganho de US$ 4,9 bilhões apenas para carne bovina, de frangos e etanol, como informou o Valor em sua edição de ontem.

Os ganhos são modestos, mas não envolveram contrapartidas altas que fossem capaz de anulá-los. A concessão, segundo a indústria, foi equilibrada, com as tarifas máximas de importação recuando de 35% para 23,8% e a tarifa média, para 13,5%. A Confederação Nacional da Indústria estima que 56% dos produtos terão corte real de tarifa.

O Brasil se distanciou do G-20 em seu próprio interesse, pois as salvaguardas o prejudicam. Foi possível a união enquanto o objetivo era conduzir a guerra contra os subsídios dos ricos. Essa união, sabia-se, escondia interesses antagônicos, que explodiram na fase final. Foram conseguidos pequenos avanços diante de uma rodada que se pretendia do "desenvolvimento". Não é certo que as negociações cheguem a uma conclusão. Desfigurada pela intransigência dos países ricos, há sérias dúvidas se valeu a pena esperar tanto tempo por tão pouco.