Título: Doha fracassa e amplia disputas comerciais
Autor: Moreira , Assis
Fonte: Valor Econômico, 30/07/2008, Brasil, p. A3

O comércio internacional entra numa fase de mais incertezas para exportadores e importadores e ameaça de novas disputas entre os países, com o colapso, ontem, da negociação global de liberalização, a Rodada Doha, após quase sete anos de discussões. O fracasso se consolidou pela intransigência dos Estados Unidos e da Índia, num confronto sobre medidas para os países em desenvolvimento com agricultura frágil frearem importações agrícolas.

A reação com o colapso da rodada - e em decorrência de um tema complexo, mas periférico até então na negociação - foi resumida por Celso Amorim, ministro das Relações Exteriores do Brasil: "Lembro de um escritor italiano [Italo Svevo] que escreveu que se lembrava de tudo, mas não entendia nada. É como me sinto hoje".

A Rodada Doha fracassou pela intransigência de americanos e indianos, principalmente, sobre como aplicar a salvaguarda contra importações. Havia uma série de outras questões perigosas na agenda, mas este aspecto foi tomado como uma questão de princípio, e prevaleceu sobre interesses comerciais, a se crer nos indianos.

A briga se confirmou porque a representante americana Susan Schwab resistiu a reabrir o pacote agrícola e industrial do diretor-geral da OMC, Pascal Lamy, enquanto a Índia queria mais espaço para usar a proteção para agricultores pobres em caso de súbito aumento de importação ou queda de preços. Lamy constatou, após 60 horas de intensivas negociações, que as posições de Washington e Nova Déli eram "irreconciliáveis".

Nos corredores, ficou a suspeita de que a intransigência americana pode ter sido, inclusive, para evitar a discussão sobre algodão, pela qual o país seria pressionado a se comprometer com uma redução acelerada dos subsídios a seus cotonicultores. Mas os americanos dizem que não tinham como aceitar mais barreiras nos mercados emergentes quando ofereceram, em contrapartida, reduzir os subsídios para US$ 14,5 bilhões - o dobro do que gastam atualmente.

Para o diretor da OMC, o fracasso ameaça seriamente o sistema multilateral de comércio. Ele calcula que os países jogaram fora US$ 130 bilhões por ano em benefícios, na forma de redução de tarifas de importação agrícola e industrial, dos quais 70% ficariam com as nações em desenvolvimento. Como as atuais regras comerciais são cada vez mais contestadas, muitos países esperavam a rodada para corrigir desequilíbrios e resolver antigas pendências, como é o caso do Brasil envolvendo algodão e etanol com os Estados Unidos e a União Européia e América Latina, com a banana.

Lamy está tentando preservar os entendimentos para retomar a negociação mais tarde. Mas Amorim foi um dos ministros que deu poucas esperanças de que isso ocorra. Para Peter Mandelson, da União Européia, "trabalhamos pelo sucesso, mas o fracasso foi coletivo. Uma força irresistível se encontrou com um objetivo inamovível e jogou o compromisso para fora da janela". "O fiasco nos foi imposto. Nunca as coisas estiveram tão perto, e acabamos com isso", reclamou a comissária européia de agricultura, Mariann Fischer Boel.

Kamal Nath, o ministro indiano alvo de muitas críticas, se declarou "decepcionado", o que não aparecia em seu rosto. Lembrado de que não garantiu a salvaguarda especial para proteger 650 milhões de agricultores, retrucou que tampouco cortará tarifas. Susan Schwab, com a expressão desfeita, reclamou: "Estávamos na sexta a noite tão perto de concluir o acordo". Ela procurou acalmar os parceiros e disse que os EUA continuarão comprometidos com a OMC.

Esse é o grande temor entre muitos países: que os EUA cada vez mais ignorem as regras multilaterais. Basta ver sua demora em adotar decisões da OMC, inclusive no caso do algodão. O Brasil ganhou a disputa contra os subsídios americanos, mas até hoje Washington não acatou inteiramente a decisão dos juízes - e o Brasil espera que os árbitros da OMC estabeleçam o montante da retaliação que poderá aplicar contra bens americanos.

Amorim disse que olharia os índices das bolsas, para ver se o "air crash" de Doha teve impacto, ou indicaria a irrelevância da Rodada. Impulsionadas pela queda do preço do petróleo, as bolsas européias e Wall Street se recuperavam.