Título: Um debate racional sobre a ação da Justiça e da polícia
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 30/07/2008, Opinião, p. A10

Das 80 operações de maior repercussão feitas pela Polícia Federal (PF) desde o início do governo Lula, em 2003, 75 resultaram em denúncias do Ministério Público contra os acusados, segundo "O Estado de S. Paulo" ("Maioria das ações da PF resulta em denúncias contra os investigados", 27/07). Essa é uma informação fundamental para o debate em torno da ação da PF, alimentada sobretudo pelas críticas do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, àquela instituição.

Após a Operação Satiagraha, que prendeu o empresário Daniel Dantas e pessoas a ele ligadas, Mendes disse que as operações da PF se resumiam ao espetáculo da prisão e, na maioria das vezes, não produziam resultado efetivo - ninguém era condenado depois porque a polícia não produzia provas consistentes. A reportagem de "O Estado" mostra que não é bem assim. Se as operações não tiveram efeito, não foi porque de forma generalizada PF e Ministério Público não produziram provas, mas sobretudo porque os acusados se beneficiaram de lei processual extremamente liberal que permite a quem tem bons advogados adiar a sentença "transitada em julgado" o tempo suficiente para garantir que a impunidade seja a regra, não a exceção.

Em artigo no jornal "O Globo" de ontem, o subprocurador-geral da República e coordenador da 2ªCâmara de Coordenação e Revisão e Controle Externo da Atividade Policial do Ministério Público, Wagner Gonçalves, descreve a trajetória de uma sentença em primeira instância até o julgamento de seu último recurso - que pode acontecer muitos anos depois; e em alguns casos sequer acontece porque o crime prescreve antes do julgamento em última instância. O negócio da defesa é não deixar que a sentença transite em julgado - que é apenas quando, pela lei brasileira, o réu é considerado culpado. Antes disso, e enquanto existir apelação possível, ele é inocente. A partir da primeira sentença, o trabalho do advogado é questionar tudo. "Alegam: inépcia da denúncia; falta de justa causa para a ação penal; nulidade de tudo e por tudo; falta de fundamento da prisão temporária ou preventiva - não há dados concretos; falta de fundamentação da sentença do acórdão" etc. Nesse sistema, quem sentencia é a primeira instância - o juiz e o promotor que, segundo o subprocurador, formam um verdadeiro "exército de Brancaleone".

Pelos números levantados pelo jornal paulista, a opinião de Gonçalves está longe de ser uma posição corporativa. O sistema penal, de fato, dá mostras de sucumbir a liberalidades processuais que apenas têm beneficiado pessoas com poder aquisitivo para bancar bons advogados durante anos, ou décadas. É dele que resulta a sensação de impunidade que tem a população brasileira - pelo simples fato de que, na prática, acaba tornando as pessoas mais ricas inimputáveis. E, entre elas, as pessoas que têm cargo eletivo ou político são mais inimputáveis ainda. No caso da Operação Sanguessuga, por exemplo, isso é visível: na Justiça de Mato Grosso, onde são processados os que não têm foro privilegiado, foram denunciadas cerca de 160 pessoas. No STF, onde seis inquéritos foram abertos para investigar o envolvimento de parlamentares, nenhuma denúncia até agora foi aceita. Após sentenciados nos Estados, os acusados da operação poderão interpor sucessivas apelações e pedidos de habeas corpus, e por meio deles também entrar na fila do STF. Lá, por falta de estrutura para cumprir a função de tribunal penal que a lei acaba lhe conferindo, os processos ficarão indefinidamente à espera de um trânsito em julgado. "Há uma excessiva banalização do uso dos habeas corpus e com esse instrumento é possível levar muito mais rápido um processo às instâncias superiores", disse a procuradora regional do Rio, Sílvia Batini.

Não se trata de suprimir direitos constitucionais dos acusados, mas apenas viabilizar a execução da pena daqueles que a Justiça condenou. As instâncias superiores da Justiça não podem atuar indefinidamente como neutralizadoras do trabalho dos juízes de primeira instância. Não há nenhuma racionalidade nisso. Como lembra Gonçalves, nos EUA, que estão longe de ter um regime discricionário, a execução da pena começa com a sentença em primeira instância. Aqui, isso acontece apenas para o condenado que não pode pagar advogados para empurrar a sentença com a barriga até que ela adormeça na gaveta de um tribunal superior.