Título: Novo marco na relação fisco-contribuinte
Autor: Silva , Alessandro Alberto
Fonte: Valor Econômico, 30/07/2008, Legislação & Tributos, p. E2

Não é novidade para ninguém que a situação fiscal de grande parte das empresas brasileiras vai de mal a pior. Os sucessivos parcelamentos concedidos na esfera federal - como o Refis, o Paes e o Paex -, aos quais há vasta adesão, bem espelha essa assertiva. Nos planos estadual e municipal não é diferente. Sobram relativamente poucas empresas que estão saudáveis. Nem mesmo a recuperação econômica vivida, em especial, nos dois últimos anos está sendo suficiente para dar novo fôlego àquelas empresas em dificuldade fiscal.

A bancarrota generalizada não é benéfica para nenhuma das partes envolvidas nas relações econômicas e, de roldão, na relação entre os pólos ativo e passivo da relação tributária. Aliás, vai contra a ordem econômica de nosso sistema capitalista, que nos leva a gerar riqueza, e não a estancar os meios de produzi-la.

Então, o que resta fazer? Após tantos insucessos nos parcelamentos, a quantidade absurda de ações de execução fiscal em curso e de outras tantas no aguardo de ajuizamento (são cerca de três milhões de devedores), sem que se tenha expectativa de sucesso além dos ínfimos 1% ou 2% de recuperação de créditos, marcham em linhas paralelas à reforma da Lei de Execução Fiscal - a Lei nº 6.830, de 1980 - e ao projeto de lei que cria a transação fiscal. Para o primeiro caso, pela necessidade de agilizar a cobrança executiva fiscal e pelo montante dos créditos tributários envolvidos, os debates foram mais exaustivos e as polêmicas maiores, em face dos pontos conflitantes que vêm a lume. Por razões de espaço e foco desse artigo, não nos ateremos sobre a nova Lei de Execução Fiscal, mas naquilo que se denomina transação fiscal. Cumpre dizer, de antemão, que a implementação prática da transação chega tarde, pois o Código Tributário Nacional (CTN), de 1966, prevê essa possibilidade nos artigos 156, inciso III, 171 e 172.

O instituto da transação tributária é inspirado na legislação italiana de 1994 e adotado também nos Estados Unidos, França e Alemanha. Visa reduzir os litígios entre os contribuintes e o fisco, melhorar a eficiência da arrecadação, aplacar as controvérsias tributárias, conter a curva ascendente de passivos tributários e minorar a evasão fiscal, dentre outros propósitos, de modo a possibilitar a recuperação de pelo menos 10% da dívida tributária em favor da União, que hoje situa-se em torno de R$ 900 bilhões, dentre os quais R$ 300 bilhões de natureza previdenciária.

O projeto prevê a aproximação entre o credor e o devedor, de sorte a criar uma maior confiança entre as partes, como ponto de partida para a conciliação. Aliás, a conciliação já está enfaticamente posta na pauta do Poder Judiciário há dois anos exatamente como o meio, talvez único, de agilizar a prestação jurisdicional. Transplantado para as relações entre o credor e o devedor tributário, a conciliação poderá ser administrativa ou judicial, em qualquer fase do processo anterior à sentença, na qual encargos como juros e multa seriam reduzidos em até 50% e 100%, respectivamente, ou 70% para outros casos de sanção tributária.

Para empresas em dificuldade econômica e financeira poderão ser agrupados os débitos vencidos, inscritos ou não em dívida ativa, os quais serão apresentados à Fazenda pública acompanhados de um plano que assegure a implementação do modo de pagamento. Essa recuperação tributária implica na manutenção do meio de produção e de empregos e preserva o interesse público quanto à arrecadação de tributos e à função social do agente econômico. Isso se aplicaria também às empresas em recuperação judicial para solucionar a insolvência fiscal, criando uma ponte para unir a transação tributária com a recuperação judicial, atualmente em campos separados.

Não se trata de um projeto que cria um parcelamento de dívidas a ser requerido a qualquer momento, nos moldes dos já implementados ou dos existentes. Também não é uma anistia acompanhada de remissão previamente formatada. A transação fiscal põe frente a frente credor e devedor, em câmaras de conciliação, cuja composição pode ser paritária aos moldes dos conselhos de contribuintes, para discutir um plano de pagamento de dívidas, partindo-se de patamares mínimos - especialmente a minoração de multa e juros. Não é dividir uma dívida de 100 unidades monetárias em 50 meses e pagá-la sob determinada taxa de juros. É o encontro de um mecanismo particularizado de equacionar um passivo fiscal sob as condições econômico-financeiras do contribuinte e que sejam minimamente aceitáveis para o fisco, para que não se transforme em um débito eterno, pouco significativo em termos de arrecadação a ponto de desestimular a adimplência daqueles outros contribuintes com regularidade fiscal.

No projeto constam ainda outros meios de transação, como o compromisso arbitral, no qual, diante de fatos que demandem conhecimentos técnicos, um árbitro é escolhido pela autoridade fiscal para elaborar um parecer que dê a dimensão fática do caso. Também prevê a transação por adesão, a qual refere-se a casos semelhantes e de massa cujos critérios de solução poderão ser estabelecidos pelo procurador-geral da Fazenda Nacional e colocados à disposição de quem desejar aderir. Tal modalidade tem o especial condão de atingir situações fáticas em grande escala que afete um elevado volume de contribuintes, com potencial para prevenir cobranças judiciais.

Para afastar aspectos polêmicos, o projeto de lei retirou pontos que constavam da versão original, como a interpelação preventiva antielisiva (caso em que o contribuinte submete à autoridade fiscal a conduta e regime legal que almeja adotar e solicita uma confirmação prévia da autoridade fiscal para implementá-lo), a transação preventiva (na qual, diante de uma situação potencialmente litigiosa, o contribuinte ou entidade de classe podem suscitar a transação) e a transação penal (específica para contribuinte em débito condenado a até três anos e que pague integralmente o crédito tributário requerer a conversão da pena em prestação de serviços).

Nesses casos, entendemos que tais aspectos não deveriam ter sido defenestrados no nascedouro do projeto, mas mantidos, para que pudessem se beneficiar do aprimoramento que os debates acarretarão. A transação preventiva, por exemplo, relativa a uma situação que afete um segmento econômico inteiro, poderia deitar luzes sobre um caso concreto e solucioná-lo, evitando demandas sucessivas. Não faz sentido desprezar a possibilidade de um ajuste coletivo anterior para aguardar o desfecho de litígios individuais e em larga escala. De igual jaez a interpelação preventiva antielisiva, que, se adotada, poderia dar mais segurança jurídica nos casos de planejamento tributário e prevenir questionamentos futuros.

O projeto contém muitos outros aspectos que certamente suscitarão acaloradas discussões no Congresso Nacional. Se aprovado, a sua possível regulamentação será objeto de uma atenção especial para que o cerne da proposta não se dilua nos meandros das normas infralegais. Mas dá esperanças a nós todos de termos uma relação mais civilizada entre os contribuintes e o fisco, fulcrada na confiança e na transparência, com efeitos diretos na vida econômico-financeira das empresas e na arrecadação do Estado.

Alessandro Alberto da Silva é advogado associado do escritório Motta Advogados Associados

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