Título: Corrupção, culpa e responsabilidade
Autor: Filgueiras , Fernando
Fonte: Valor Econômico, 01/08/2008, Opinião, p. A10

Chama a atenção o modo como a operação Satiagraha, da Polícia Federal, desvendou um esquema sofisticado de corrupção, que envolvia políticos, empresários e burocratas. Não por acaso, a lista de crimes contra a administração pública é muito grande, passando do tráfico de influência à corrupção passiva. A lista de envolvidos também não é pequena. Passa pelos três poderes e converge em um mundo empresarial obscuro, agarrado às prebendas do Estado, promovendo uma privatização dos recursos públicos que chega próximo à imaginação das comédias de pastelão.

Há tempos que os jornais converteram-se em máquinas de produzir escândalos, tendo nas manchetes e nas chamadas televisivas um rol de notícias policiais. A política tornou-se o lugar do sensacionalismo policialesco, onde não mais se discute projetos e perspectivas de interesse público, mas a criminalização crescente dos agentes políticos. Mal engolimos o escândalo dos cartões corporativos, surge a operação Satiagraha. Na sucessão de escândalos, o esquecimento coletivo impera porque não é possível acompanhar a produção de notícias e o desfecho das dezenas, ou, quem sabe, milhares de casos de corrupção que varrem o Brasil na sintonia do descalabro generalizado. Quem se lembra de Renan Calheiros e de suas aventuras sexuais?

Mantida a atual conjuntura do espetáculo da corrupção, mais a política será vista pela perspectiva do Direito Penal; mais os cidadãos clamarão pelo endurecimento de penas, pelo gozo de ver a elite algemada e pelo papel de bastião do mundo republicano exercido pela Polícia Federal. Ao vermos a política pela ótica do Direito Penal, santificaremos a noção de culpa e condenaremos a noção de responsabilidade, tão essencial à consolidação do Estado Democrático de Direito, a uma posição menor tanto nas normas expressas via direito, quanto no cotidiano da cidadania. Não pensamos nunca no exercício da responsabilidade, tanto individual quanto coletiva, pela corrupção que varre a República. Pensamos apenas em transformar a política no universo policial, no qual imperam noções autocráticas de exercício do poder. Ao santificarmos a culpa da elite política brasileira pela corrupção, hoje cotidiana no Brasil, damos margem para soluções autoritárias, que vão se tornando (erroneamente) preferidas às garantias e direitos expressos na Constituição.

A corrupção no Brasil está abrindo uma ferida institucional em que os três poderes confrontam-se em arenas já antes ocupadas, o que levou ao desastre da democracia em um passado não tão distante assim. É fato que o crescimento das investigações corrobora para a ampliação do controle da corrupção. De fato, os meios de controle avançaram na Nova República, de modo a fazer com que a corrupção não seja tolerada pelo Estado. Isso é um avanço da democracia, indiscutivelmente. Todavia, não podemos perder a noção de responsabilidade, caso contrário passaremos a nutrir uma preferência pelo uso da força à força da lei. A ferida institucional que está sendo aberta invoca uma conflitualidade crescente dos três poderes e um movimento inercial por parte da sociedade civil, que assiste, ora passiva, ora ativamente, o espetáculo policial armado para o combate à corrupção.

-------------------------------------------------------------------------------- Sem responsabilidade e igualdade, preferimos jogar a culpa nas elites; é preciso perceber que há corrupção no cotidiano --------------------------------------------------------------------------------

O Congresso Nacional há muito perdeu a confiança do cidadão comum. É considerado o local por excelência da corrupção e circo de horrores da vida pública brasileira. O Executivo escamoteia sua própria corrupção, mas não dá para esquecer o mensalão e o modo como a corrupção serviu para criar um sistema de patronagem sobre o Legislativo, servindo à produção de maiorias artificiais. O Judiciário, por fim, avoca-se o papel de guardião da moralidade administrativa, mas confronta-se a todo instante com a suspeição e desconfiança da esfera pública quando um personagem como Daniel Dantas afirma que nas instâncias superiores ele resolveria.

A desconfiança do cidadão comum é vista por uns como algo positivo, porque significa que a visão crítica da cidadania está ativada. Contudo, a desconfiança do cidadão comum desdobra-se numa crescente indiferença com a política, tendo em vista a inércia da corrupção que, apesar de promover espasmos de vida ativa, cai em um cotidiano em que cada escândalo sucede ao outro, sem que reforcemos a responsabilidade, mas santifiquemos a culpa. Cada vez mais percebemos a corrupção como um pecado cometido por agentes públicos, para o qual não temos uma noção de pessoa responsável, mas uma lógica de sacrifício que sacia o gosto autocrático pelo endurecimento de penas, tão difundido hoje na esfera pública no Brasil.

A noção de responsabilidade pressupõe um critério de igualdade entre cidadãos porque em uma ordem republicana cada cidadão tem uma igual liberdade de ação e consciência. No Brasil, exatamente por não termos essa noção de igualdade de modo mais forte, preferimos um Estado e um empresariado assistencialista que quando cometem delinqüências com o dinheiro público têm sua culpa santificada e exorcizada, porquanto submetam-se ao sacrifício em praça pública. Sem a noção de responsabilidade e igualdade, preferimos cinicamente jogar a culpa nas elites, sem percebermos o quanto há de corrupção no cotidiano e nas pequenas coisas, no Brasil.

O Brasil avançou no controle da corrupção porque nenhum delito fica guardado em segredo. Mas ainda precisamos avançar mais um passo no combate à corrupção no país. E esse passo está em reforçar a noção de responsabilidade, que deve ser estendida ao público e ao privado de modo a reforçar uma idéia abrangente de cidadania. Não podemos apenas submeter a política ao sacrifício pelo controle da corrupção. Ao contrário disso, a solução para a corrupção precisa ser política, movida pelos valores republicanos da democracia. E reforçar os valores republicanos de democracia significa, sobretudo, pensar uma idéia de cidadania completa. Ou seja, para combatermos a corrupção, precisamos de mais democracia.

Fernando Filgueiras é cientista político e pesquisador do Centro de Referência do Interesse Público (CRIP) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).