Título: Há mais vida para além de Doha
Autor: Costa , Francisco Seixas
Fonte: Valor Econômico, 01/08/2008, Opinião, p. A11

O fracasso da Rodada Doha deve ser interpretado como a óbvia constatação de não estarem maduras as condições para um compromisso comercial à escala internacional, que seria altamente desejável para a regulação da fase atual da globalização, em especial num tempo que, tudo assim o indica, se vai prolongar num registro de crise e de instabilidade econômica coletivas, embora com impactes regionais e setoriais diferenciados.

O que se passou em Genebra não deve, porém, bloquear o recurso a outras soluções, de caráter menos global, mas que, em si mesmas, podem ter a virtualidade de conseguir superar dificuldades de natureza bilateral ou bi-regional, há muito detectadas como entraves à liberalização entre alguns espaços econômicos. Pelo contrário, tais soluções são hoje as únicas alternativas disponíveis para evitar a deriva para uma cultura de protecionismo, que de forma oportunista procura se instalar à sombra do não-resultado de Doha.

Sem prejuízo de diferentes modelos aplicáveis a outras áreas geográficas, parece, assim, estarem hoje criadas as condições para se revisitar, tão cedo quanto possível, o quadro negocial que, no passado, vinha a ser debatido entre a União Européia e o Mercosul.

Quando, há um ano, se assinou em Lisboa, durante a nossa presidência da UE, a proposta apresentada por Portugal para uma Parceria Estratégica entre o Brasil e a União Européia, ficou bem claro que esse formato de diálogo específico não era feito em detrimento do nosso comum interesse em continuar a aprofundar o quadro econômico entre o Mercosul e a União Européia. Em nome do meu governo, tive o ensejo de esclarecer isso mesmo, na sede do Mercosul, em Montevidéu, ainda antes da primeira Cúpula Brasil-UE, que levou o presidente Lula a Lisboa.

Todos sabemos que as expectativas que, à época, ainda eram colocadas num eventual sucesso da Rodada Doha levaram a que, por algum tempo, se aceitasse que o processo UE-Mercosul devesse aguardar os resultados desse mesmo exercício. Naquela altura, foi considerado que era importante prosseguir, como se prosseguiu, no aprofundamento da substância da Parceria Estratégica Brasil-União Européia, até porque, da respectiva agenda, tinham deliberadamente sido excluídas matérias que estavam em debate na Rodada Doha.

Assim, não teria agora qualquer sentido, podendo mesmo configurar um mero expediente protelador, se acaso se viesse a argumentar em sentido inverso - isto é, que se deveria esperar pela conclusão da Parceria Estratégica antes de reiniciar o trabalho negocial UE-Mercosul. Esperemos que ninguém ouse avançar com tão peregrina idéia.

-------------------------------------------------------------------------------- Não é legítimo que certas divergências entre países do Mercosul venham constituir-se como obstáculos de uma posição comum do bloco --------------------------------------------------------------------------------

Independentemente da falta de um resultado final, o longo e penoso debate conduzido em Genebra não foi em vão: vários patamares de intransigência foram superados, diversas flexibilidades pontuais foram detectadas e, por essa razão, podemos ver agora, de forma muito mais clara, as verdadeiras dificuldades que subsistem. Em especial, podemos ter hoje uma leitura mais rigorosa sobre a verdadeira dimensão dos problemas que, no passado, haviam sido identificados no contexto negocial UE-Mercosul.

Também não me parece legítimo que se argumente que certas divergências detectadas entre países do Mercosul, durante a fase final de Doha, venham a constituir-se necessariamente como novos obstáculos intransponíveis à obtenção de uma posição comum do bloco, agora no caminho para um futuro compromisso com a União Européia. Com efeito, foi patente que algumas dessas divergências estavam ligadas a problemas com países terceiros, fora do quadro europeu, naturalmente sem prejuízo de alguns outros ainda subsistirem nesse mesmo contexto.

O papel negociador, construtivo e responsável, que o Brasil deixou evidente na fase final da Rodada Doha confere-lhe hoje um importante crédito para ajudar a definir, do lado do Mercosul, a fixação de uma agenda no seu diálogo econômico coletivo com a Europa, na qual possam ser comportadas todas as questões que preocupam os parceiros do bloco.

O saldo negativo da negociação de Doha constituiu uma decepção para a União Européia, que sempre teve, e continua a ter, a regulação da ordem internacional, através da Organização Mundial do Comércio (OMC), como um dos pilares fundamentais da sua filosofia de ação externa e que nisso se tem empenhado de forma muito ativa, em moldes que pedem meças a qualquer dos outros parceiros.

Mas há mais vida para além de Doha, pelo que se torna importante que saibamos aproveitar as janelas de oportunidade, em especial nos quadros bi-regionais, que possam colmatar a temporária inexistência de um novo e mais ambicioso marco regulatório no âmbito da OMC. Por isso, este é o tempo certo para nos voltarmos a concentrar na negociação de um acordo entre o Mercosul e a União Européia.