Título: Os blocos dos descontentes
Autor: Pariz, Tiago
Fonte: Correio Braziliense, 05/03/2011, Política, p. 4

O Brasil, país do carnaval, tem mais é que se orgulhar do que é. Se há problema em tal aposto, está na simplificação, no aplainamento das diferenças. Somos um país muito diverso. Nossos carnavais incluem maracatus num lugar e trios elétricos em outro. O samba está em toda parte, mas com muitas nuances. Para quem vê de helicóptero, a folia e a aglomeração de Salvador e Olinda são muito parecidas. É preciso mergulhar na multidão para perceber a potência das guitarras amplificadas no primeiro caso, e, no segundo, a intensidade acústica dos instrumentos de sopro e de percussão.

Toda diversidade tem também seu lado B: as rixas intrarregionais e inter-regionais que sobram no Brasil, independentemente do carnaval. Faz alguns dias, o prefeito de Manaus, Amazonino Mendes, do PTB, bateu boca com uma moradora de área de risco na periferia da cidade. Ao saber que ela era paraense, reagiu: ¿Agora está explicado¿. O comentário causou indignação em Belém e desagradou também muitos manauaras. Amazonino teve de pedir desculpas pelo deslize, incomum entre políticos tarimbados. Mas claramente deu voz a um tipo de preconceito compartilhado por parte das pessoas com quem convive.

Rixas são a parte caricata de sentimentos que permeiam a convivência na diversidade. Há muita desconfiança e descontentamento dos brasileiros de um estado em relação aos de outros. Certamente isso não é exclusividade do Brasil. A questão é que esses embates atravancam duas das principais reformas que o Brasil se propõe a fazer: a política e a tributária. Não há grande disposição do governo de fazer com que os temas avancem no Congresso Nacional neste ano. Assim, é importante debruçar-se sobre os sentimentos envolvidos nesses assuntos, que também podem, e devem, ser alvo de políticas públicas.

Na reforma política, estão em discussão critérios de escolha dos deputados federais. As coligações partidárias têm os votos dados a todos os integrantes somados. O que conta para decidir quem entra é a média individual dos votos do grupo, e não quantos votos cada um teve. Se ganhassem só os mais votados, o resultado seria radicalmente diferente do que se vê. A essa opção, chamada majoritária, existe outra intermediária: valeria a média, mas de cada partido ¿ as coligações seriam proibidas.

Outros pontos mais polêmicos não estão em pauta, mas podem vir a entrar. O voto distrital, já descartado em etapas anteriores de discussão da reforma política, ainda é uma bandeira para alguns grupos. Por esse sistema, o eleitorado é dividido em distritos, e cada um escolhe um representante. O problema é que se os distritos tiverem o mesmo número de eleitores, muda não só a divisão da Câmara dos Deputados entre os partidos, mas também entre as unidades da Federação.

Os paulistas são os mais prejudicados hoje pela desproporção e alegam que isso faz com que tenham menos verbas federais, apesar de liderarem a arrecadação de tributos. Por outro lado, travam qualquer mudança na legislação do Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), sem o que não se faz reforma tributária digna desse nome. O problema do ICMS é que a maior fatia incide na origem do produto. Um paraense que compra algo da Zona Franca de Manaus paga uma parte do ICMS ao estado do Amazonas. A rixa regional se explica em parte pelo fato de que a força industrial amazonense é resultado de incentivos públicos federais. Mas isso também se aplica a São Paulo. O estado mais industrializado do país recebe incentivos a rodo desde que era uma província do Império ¿ os imigrantes europeus foram para lá graças a isso.

Incentivos fiscais têm de ser usados com muita parcimônia. Pesam no nosso bolso e correm o risco de ir parar no bolso de políticos corruptos e empresários rentistas. Mas é inegável que têm grande correlação com o desenvolvimento de algumas regiões do país ¿ portanto também com a intensificação das desigualdades econômicas regionais. Espera-se que as políticas públicas tenham por objetivo o caminho oposto. Afinal, diferenças se transmitem mesmo em valor quando o assunto é a cultura brasileira.