Título: Não chore por Doha
Autor: Rodrik , Dani
Fonte: Valor Econômico, 05/08/2008, Opinião, p. A13

Será que vai, ou será que racha? Será que os ministros do comércio do mundo terminarão por assinar um novo acordo de comércio multilateral que reduza subsídios agrícolas e tarifas industriais, ou será que se despedirão de mãos vazias? A saga já vem desde novembro de 2001, quando a atual rodada de negociações foi inaugurada em Doha, Qatar, com numerosos subseqüentes altos e baixos, quase colapsos e prorrogações.

A mais recente rodada de negociações em Genebra, mais uma vez, não produziu um acordo. A julgar pelo que dizem a imprensa financeira e alguns economistas, o que está em jogo não poderia ser mais valioso.

Se concluída com êxito esta denominada "rodada de desenvolvimento", centenas de milhões de agricultores em países pobres serão tirados da pobreza e assegurarão que a globalização continue viva. Se prevalecer um fracasso, o sistema mundial de comércio receberá um golpe quase fatal, fomentando desilusão no Sul e protecionismo no Norte. E, como os editorialistas se apressam a dizer, as eventualidades adversas são particularmente grandes, num período em que o sistema financeiro mundial está atordoado devido à crise no mercado de crédito imobiliário de segunda linha americano e ao fato de os EUA estarem entrando em recessão.

Porém, um exame da agenda Doha numa perspectiva de maior distanciamento nos faz buscar o porquê de toda essa preocupação. É verdade que as políticas de subsídios ao setor agrícola em países ricos tendem a deprimir os preços mundiais e, simultaneamente, as rendas dos produtores agrícolas nos países em desenvolvimento. Mas para a maioria dos produtos agrícolas a eliminação gradual desses subsídios terá provavelmente efeitos apenas modestos sobre os preços mundiais - no máximo alguns pontos percentuais. Isso é café pequeno, se comparado à substancial alta de preços que os mercados mundiais têm vivido recentemente, e de todo modo seriam afogados pela elevada volatilidade a que esses mercados estão normalmente sujeitos.

Embora preços mais altos de produtos agrícolas em todo o mundo ajudem, podem prejudicar os domicílios urbanos em países em desenvolvimento, muitos dos quais são também pobres. É por isso que a recente disparada nos preços dos alimentos levou muitos países que cultivam alimentos a impor restrições às exportações e levou quase ao pânico as pessoas preocupadas com a pobreza mundial.

É difícil conciliar esses temores com a percepção de que a Rodada Doha de negociações comerciais poderia tirar dezenas, se não centenas de milhões, da pobreza. O melhor que pode ser dito é que uma reforma no sistema agrícola dos países ricos traria vantagens e desvantagens para os pobres do mundo. Ganhos muito claros existem apenas para algumas commodities, como algodão e açúcar, não consumidas em grandes quantidades por famílias pobres.

Os grandes beneficiários de reformas no sistema agrícola nos EUA, na UE e em outros países ricos seriam seus contribuintes e consumidores, que há muito tempo vêm arcando com o custo dos subsídios e proteções recebidas por seus compatriotas agricultores. Mas tenha o leitor clareza de que, nesse caso, estamos falando de reforma de política doméstica e redistribuição interna de renda. Isso pode ser bom em termos de eficiência e mesmo por razões de eqüidade, mas deveria ter se tornado a preocupação principal da Organização Mundial de Comércio (OMC)?

-------------------------------------------------------------------------------- Nós vivemos sob o regime de comércio mais liberal na história não porque a OMC o impõe, mas porque maior abertura é do interesse de países importantes --------------------------------------------------------------------------------

E o que dizer das tarifas sobre produtos da indústria de transformação? Os países ricos exigiram grandes reduções nas tarifas sobre importações em países em desenvolvimento, como Índia e Brasil, em troca da eliminação gradual de seus subsídios à agricultura. (Por que eles precisam ser subornados por países pobres para fazerem o que é bom para eles é um mistério insolúvel). Mas também nessa esfera os possíveis benefícios são escassos. As alíquotas tarifárias aplicadas em países em desenvolvimento, embora mais altas do que nos avançados, já estão em mínimo histórico.

Segundo estimativas do Banco Mundial, uma eliminação total de todas as restrições ao comércio de mercadorias viria, em última instância, a elevar em não mais que 1% as rendas nos países em desenvolvimento. O impacto sobre as rendas em países desenvolvidos seria ainda menor. E, naturalmente, a Rodada Doha viria a apenas reduzir essas barreiras, e não eliminá-las de todo.

A Rodada Doha foi construída em cima de um mito, qual seja, o de que uma agenda de negociações centrada em agricultura constituiria uma "rodada de desenvolvimento". Isso proporcionou a grupos de interesse importantes o que queriam. Proporcionou aos governos de países ricos e ao então diretor-geral da OMC, Mike Moore, uma oportunidade de assumir uma postura de respeitabilidade ética diante dos manifestantes antiglobalização. Isso proporcionou aos EUA um instrumento para destroçar a Política Agrícola Comum (PAC) da União Européia (UE). E foi sob medida para os poucos países em desenvolvimento e renda média (como Brasil, Argentina e Tailândia) que são grandes exportadores agrícolas.

Mas o mito de uma rodada de "desenvolvimento", incentivado por negociadores de comércio e economistas que defendem a "teoria da bicicleta" das negociações de comércio - a visão segundo a qual o regime de comércio só pode permanecer de pé mediante contínuos progressos na liberalização -, revelou-se um tiro pela culatra porque os EUA e países em desenvolvimento cruciais encontraram dificuldades para liberalizar seus setores agrícolas. O que, em última análise, resultou no colapso da mais recente rodada de negociações foi a recusa da Índia de aceitar regras rígidas que, julgaram seus negociadores, colocariam em risco os pequenos proprietários agrícolas indianos.

Ainda mais importante é que os temores subjacentes à teoria da bicicleta são muitíssimo exagerados. Nós vivemos sob o regime de comércio mais liberal na história não porque a OMC o impõe, mas porque países importantes, tanto ricos como pobres, consideram que maior abertura seja de seu melhor interesse.

Os verdadeiros riscos estão em outras esferas. De um lado, há o perigo de que a conseqüência do atual alarmismo seja precisamente o que se teme - que os negociadores de comércio e investidores transformem o cenário apocalíptico em realidade, ao entrar em pânico. Por outro lado, há o risco de que uma concluída "rodada de desenvolvimento" venha a não satisfazer as elevadas expectativas que criou, comprometendo ainda mais a legitimidade das regras do comércio mundial num prazo mais longo. No fim das contas, talvez sejam os imponderáveis - psicologia e expectativas -, em vez de resultados econômicos efetivos, que determinarão resultados finais.

Por isso, não chore por Doha. Doha nunca foi uma rodada de desenvolvimento, e o mundo futuro dificilmente será algo distinto do de ontem.

Dani Rodrik, professor de economia política na Escola de Governo John F. Kennedy, na Universidade Harvard, foi o primeiro agraciado com o prêmio Albert O. Hirschman, concedido pelo Social Science Research Council. © Project Syndicate/Europe´s World, 2008. www.project-syndicate.org