Título: Carta concentrou poder e impôs gasto social
Autor: Agostine , Cristiane
Fonte: Valor Econômico, 04/08/2008, Política, p. A6

Limongi: "A oposição perdeu força e se quiser fazer mudanças mais consistentes terá de ascender ao poder" A Constituição Federal de 1988, que completa 20 anos em outubro, foi a principal responsável pela concentração de poderes no Executivo em detrimento ao Legislativo. A análise da Carta Magna por especialistas, duas décadas depois de sua promulgação, ajuda a entender o motivo pelo qual cerca de 85% das mudanças nas leis são de iniciativa do governo federal e não de parlamentares.

A redefinição dos poderes após o fim do regime militar no país teve "profundos reflexos" no atual sistema político, observa o cientista político Fernando Limongi, professor titular da USP especialista na relação entre os poderes Executivo e Legislativo. A aproximação dos partidos políticos e dos congressistas em relação ao governo federal, seja ele qual for, é um dos principais reflexos. "O plenário do Congresso é bastante disciplinado e 90% da base governista vota com o governo. O presidente sabe quantos votos terá em uma votação no Legislativo. Pode contar com esses 90% dos aliados", disse Limongi. "O Executivo tem muito controle sobre o Legislativo".

A Constituição, na análise do cientista político, ao centralizar os processos de decisão, criou condições ao governo ter consolidada sua base de sustentação e criou dificuldades para a oposição. "Se algum partido quiser mudar uma política pública terá de apoiar o governo. Se não for o Executivo a propor a mudança, ela não irá para frente. A oposição perdeu sua força e se quiser fazer mudanças mais consistentes terá de esperar sua ascensão ao poder", comentou.

Limongi participou na sexta-feira de uma mesa redonda sobre as duas décadas da Constituição, em Campinas, no encontro da Associação Brasileira de Ciência Política. Na discussão, apesar de elogios feitos à Carta Magna, os especialistas não deixaram de enumerar diversos pontos negativos, como a concentração de poderes no Executivo, a criação de um sistema político "com corpo parlamentarista e cabeça presidencialista", a grande abertura a mudanças e a possibilidade de alterações das leis por meio do Judiciário, sem passar pelo crivo do Congresso.

"O Judiciário muda a Constituição sempre que tem de opinar sobre um assunto controverso", disse o professor da Unicamp Sebastião Velasco e Cruz. "É uma Constituição sem fim. Desde 1988 já tem 62 emendas constitucionais. É uma taxa muito alta, quando comparada a legislações de outros países", observou Cláudio Couto, professor da PUC de São Paulo.

Couto destacou a relativa facilidade que os governos têm para alterar a Carta Magna. É necessária a aprovação de três quintos dos parlamentares, sem referendos ou plebiscitos. A própria estrutura da Constituição faz com que os governos tentem mudá-la, sempre que os interesses colidam com a Carta. Comparada com sete Constituições anteriores, é a que mais define sobre políticas públicas em seu texto, com determinações sobre áreas sociais. Nas outras, as normas constitucionais tinham mais espaço. "Parece fixar na agenda dos governos a modificação da constituição. Ela 'pede' para ser alterada. Se colidir com interesses dos governos, será alterada e não precisa de muito apoio do Congresso", disse.

As emendas constitucionais não devem ser analisadas como "uma forma de violar ou destruir a Constituição", afirmou Couto. "Ela está em processo de expansão. Essa abertura às mudanças são importantes. Não se pode analisar só como fruto de interesse de congressistas", disse.

A Constituição de 1988 não é emblemática só por ter encerrado o ciclo de poder militar, iniciado em 1964. A Constituição Cidadã, como é conhecida, mostra que os investimentos em políticas sociais não são marcas só dos governos mais recentes, de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), mas sim que fazem parte das diretrizes fixadas há 20 anos. "Até a Constituição de 1988 os recursos vinculados do Orçamento iam para infra-estrutura. Depois, passaram a ser destinados para educação, cultura e previdência", lembrou Limongi. Um exemplo são os recursos vinculados à educação. A União tem de garantir pelo menos 18% do Orçamento e os Estados, 25%. Na Previdência Social, houve um avanço representativo, com a criação da aposentadoria rural.

O balanço geral dos especialistas, apesar das críticas, é positivo. "Muitos mitos que cercam a Constituição, nesses vinte anos, têm de ser reavaliados", considerou Limongi. "Com todos os problemas, foi a Constituição que permitiu reformas políticas pós governo (de Fernando) Collor", comentou Velasco e Cruz.