Título: Bancos dos países ricos ainda têm muito prejuízo pela frente
Autor: Lucchesi , Cristiane Perini
Fonte: Valor Econômico, 04/08/2008, Finanças, p. C8

As perdas de US$ 480 bilhões contabilizadas nos bancos em todo o mundo como conseqüência do estouro da bolha imobiliária nos Estados Unidos não são nem a metade do total a ser realizado com essa crise. Essa é a expectativa unânime dos analistas consultados pelo Valor. As formas usadas para contabilizar as perdas, no entanto, não são unânimes. Há quem acredite que os bancos estão maquiando balanços, escondendo prejuízos atrás de fórmulas matemáticas de avaliação de ativos mais complexos e sem liquidez a preços de mercado. Alguns negam a prática, enquanto outros defendem que os bancos não deveriam mesmo marcar a mercado todas as perdas, pois não teriam como absorvê-las com o capital disponível.

A firma de investimentos Bridgewater Associates tem números explosivos. Em relatório aos clientes que "vazou" na internet, a empresa calcula que os bancos terão de assumir perdas totais de US$ 1,6 trilhão por causa da crise das hipotecas americanas. Os bancos ainda teriam de contabilizar US$ 1,1 trilhão como prejuízo, considerando-se os números da agência Bloomberg, do total já declarado de US$ 480 bilhões. O Fundo Monetário Internacional (FMI) fala em perdas totais de US$ 945 bilhões no sistema financeiro, dos quais US$ 700 bilhões com a marcação a mercado, mas estima os prejuízos já declarados em US$ 400 bilhões.

Após ter contabilizado tantos prejuízos, "o sistema financeiro americano já está realmente muito fraco hoje", disse a a analista da Standard & Poor's Victoria Wagner. "E terá de continuar a registrar perdas, inclusive durante 2009", avalia. Combalido por uma crise aguda de liquidez que dura mais de um ano, aliviada por injeções diárias de recursos extraordinários dos bancos centrais dos Estados Unidos e Europa, o sistema financeiro dos países ricos está em risco de insolvência crescente. Neste ano, sete bancos já faliram nos EUA, um recorde desde 2002.

A lista de instituições "problemáticas" passou de 76 para 90 no primeiro trimestre, segundo o Federal Deposit Insurance Corporation (FDIC), instituição do governo americano que garante os depósitos e monitora riscos. A falência do banco IndyMac, de Pasadena, Califórnia, no dia 11 de julho, com ativos de US$ 32 bilhões, foi a segunda maior de toda a história dos Estados Unidos.

Outras falências de dimensões bem maiores só não aconteceram por causa do socorro governamental. Em 25 de julho, por exemplo, o Washington Mutual, um dos bancos mais expostos a hipotecas para pessoas físicas nos Estados Unidos, obteve US$ 10 bilhões na linha de redesconto do Fed, mais empréstimos do Federal Home Loan Bank e operações no "open market" que totalizaram US$ 50 bilhões em meio a rumores de fuga de recursos. Também em julho, as financeiras Freddie Mac e Fannie Mae, que usam garantias do governo, receberam socorro de US$ 25 bilhões.

Isso sem falar nos casos mais antigos: a Countrywide recebeu empréstimo de US$ 51,1 bilhões do governo americano em novembro, enquanto o JPMorgan recebeu crédito de US$ 30 bilhões do Fed, banco central americano, para comprar o Bear Stearns em março. Na Alemanha, desde o início da crise, foram socorridos o IKB (US$ 13 bilhões) e o Sachsen (17,3 bilhões de euros). Na Inglaterra, a Northern Rock foi nacionalizada após receber 55 bilhões de libras esterlinas.

Outros bancos - como UBS, Morgan Stanley, Merrill Lynch e Citigroup - até conseguiram levantar capital privado para fazer frente às perdas. Os fundos soberanos de países asiáticos e do Oriente Médio, além de sheiks do petróleo e bancos chineses, compraram ações e títulos de dívida subordinada dos bancos. O total de capital levantado é de US$ 300 bilhões, segundo o FMI, e de US$ 350 bilhões em 12 meses, de acordo com Mohamed El-Erian, diretor do fundo de investimento Pimco. Mas, mesmo depois de obter tudo isso, "o sistema financeiro continua precisando de capital", diz El-Erian, em artigo no site do fundo.

"As instituições financeiras esperam que, em algum futuro próximo, serão capazes de obter uma nova infusão de capital e poderão contabilizar mais perdas", diz o professor Paul Davidson, o principal economista americano pós-keynesiano vivo. Ele afirma que os bancos podem até saber hoje que no futuro seus ativos vão certamente valer muito menos do que o preço atual registrado no balanço. "No entanto, enquanto esses ativos tiverem algum valor, mesmo que arbitrário, os bancos não estarão insolventes", afirma. Ele lembra que o mercado para títulos lastreados em hipotecas, as carteiras desses títulos, carteiras com derivativos desses títulos ao quadrado e ao cubo e outros derivativos exóticos "falhou", ou seja, não existe. Por isso, os critérios para definir o preço de mercado desses ativos são discutíveis.

A venda de uma carteira de títulos lastreados em hipotecas da Merrill Lynch na semana passada foi ilustrativa. No dia 29, o banco vendeu US$ 30,6 bilhões de valor de face por US$ 6,7 bilhões. Mas a própria Merrill havia contabilizado esses títulos no balanço do segundo semestre a US$ 11,1 bilhões. "Eles tiveram de pagar um prêmio para vender toda a carteira", argumenta Victoria Wagner, da Standard & Poor's.

Outros analistas consideram que a carteira valia ainda menos do que isso e só saiu ao preço de US$ 0,22 por dólar porque a compra foi feita em sua maior parte com crédito da própria Merrill Lynch, que financiou 75% da aquisição feita pelo fundo Lone Star. O Goldman Sachs lembrou que, se o Citigroup fosse marcar como a Merrill Lynch seus ativos semelhantes, hoje contabilizados a US$ 0,53 por dólar, teria de registrar baixas contábeis de mais de US$ 16,2 bilhões.

A Merrill Lynch pôde fazer a venda e absorver a perda, pois conseguiu na semana passada levantar capital do fundo soberano de Cingapura Temasek, no total de US$ 8,5 bilhões, mas teve de compensar o fundo com US$ 2,5 bilhões por perdas passadas. Depois dos prejuízos dos investidores que compraram as ações dos bancos desde o início da crise, que chegaram a 50% em alguns casos, a disposição para aumentar suas posições nesses ativos é cada vez menor. Segundo El-Erian, um número crescente de bancos está essencialmente sem condições de levantar dinheiro neste momento sem ajuda do governo.

"Se o Fed tivesse obrigado os bancos a marcar a mercado seus portfólios nos anos 80, quando os países da América Latina começaram a entrar em moratória, teria sido um desastre de proporções bíblicas", argumenta John Mauldin, presidente da firma de consultoria Millennium Wave. "Não sobraria nenhum banco americano em pé e a economia entraria em uma profunda recessão", diz ele.

Na época, segundo ele, os maiores bancos americanos estavam tecnicamente quebrados e as autoridades econômicas permitiram que eles mantivessem os ativos em sua carteira a preços de 100% do valor de face. Só depois de seis anos ou mais, quando os bancos conseguiram capital, é que as marcações foram feitas. Hoje, na sua visão, a situação só é diferente nos detalhes. "É tudo uma questão de ganhar tempo", comenta, em relatório. "Os bancos centrais em todo o mundo estão dando aos bancos tempo para eles lidarem com seus problemas", ou seja, vender ativos e levantar mais capital. "Não há outra opção", considera ele.