Título: O poder de compra do Estado e as importações
Autor: Souza , José Henrique
Fonte: Valor Econômico, 08/08/2008, Opinião, p. A10

O governo brasileiro vem se preocupando nos últimos meses com o agravamento no desequilíbrio da balança comercial. Um dos segmentos de maior impacto na balança comercial e motivo de inquietação é o setor de produtos médicos. Para solucionar o problema, uma das medidas que vem sendo cogitada é um novo processo de "substituição de importações" utilizando como principal ferramenta o poder de compra do Estado. Semelhante instrumento já foi utilizado no Brasil por vários anos, mas nada se fala a respeito do que deu certo ou errado com essa prática.

O poder de compra do Estado para apoiar o desenvolvimento industrial é utilizado por inúmeras nações, inclusive nos países da OCDE. Usar essa ferramenta para estimular o desenvolvimento da indústria brasileira de bens para a saúde pode contribuir para elevar o padrão de vida da população, reduzir o gasto público e melhorar as contas externas. De fato, um eficiente complexo industrial da saúde ajuda a melhorar e ampliar o tratamento médico disponível ao cidadão. Mas semelhante resultado somente ocorrerá se for possível elevar a produtividade, o grau de inovação e a competitividade dos fabricantes de bens médicos instalados no Brasil.

Substituir importações sem um esforço inovativo pode retardar a melhoria no padrão de atendimento e aumentar os custos do sistema de saúde. Apenas estimular os fornecedores nacionais a substituírem importados pode ser uma solução de curto prazo com reflexos negativos sobre os preços finais desses produtos e sobre a capacidade de cobertura do atendimento médico. Do mesmo modo, pouco adiantará trocar ganhos de divisas por perdas com aumento do gasto nos hospitais sustentados pelo contribuinte. Mas a situação externa da indústria brasileira de produtos médicos na última década aponta para o fato de que o governo precisa agir rapidamente.

A tabela abaixo demonstra as dimensões do problema. O Brasil é deficitário em quase todos os ramos da indústria. Entre 1998 e 2007, o déficit cresceu sistematicamente. No último ano, o saldo negativo pulou de US$ 3,1 bilhões para US$ 4,2 bilhões, um aumento de aproximadamente 35%.

Comparando com o comércio internacional, o Brasil exporta mais acentuadamente produtos farmacêuticos e instrumentos médicos, isto é, produtos que incorporam níveis médios de tecnologia. Nos segmentos que demandam grandes investimentos em P&D, como medicamentos e aparelhos de diagnóstico, as empresas instaladas no Brasil perdem terreno.

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Assim, aproveitar o poder de compra do Estado para estimular a indústria nacional a desenvolver produtos mais sofisticados e com maiores coeficientes de elasticidade-renda parece ser uma medida acertada. Mas é preciso aliar o "public procurement" ao financiamento público, à infra-estrutura de apoio tecnológico e ao estímulo à competitividade. Justamente como ocorre nos países da OCDE e como já foi feito no Brasil.

Nas décadas de 1970 e 1980, as empresas públicas promoveram a preferência por produtos fabricados no Brasil visando substituir importações e apoiar o avanço da indústria nacional. O poder de compra do Estado, naquele momento representado pelas empresas estatais e pela rede pública de saúde, garantia a demanda por bens já produzidos, ou que seriam, por empresas nacionais, e articulava as ações de outros quatro agentes fundamentais do processo de desenvolvimento: as agências de fomento; os fabricantes, as empresas nacionais de engenharia e os centros de ensino e pesquisa.

No lado do financiamento, o BNDES apoiava o "suplier's credit" e, aliado à Finep, associava a redução do custo de desenvolvimento do fabricante às vantagens do financiamento ao usuário. A Finame apoiava as empresas sediadas no país para iniciar a fabricação pioneira de bens, importar tecnologia e elevar sua participação no detalhamento, responsabilidade e execução de projetos básicos. Por meio do BNDESPar, o banco fortalecia financeiramente as empresas nacionais subscrevendo ações, comprando projetos de engenharia e promovendo "joint-ventures" entre empresas estrangeiras e nacionais.

O uso do poder de compra do Inamps e da Ceme para desenvolver insumos, equipamentos hospitalares e fármacos, nos anos 1980, comprova que é possível um trabalho conjunto e bem planejado de várias instituições públicas, centros de ensino e pesquisas e empresas. Atualmente, o constante vai-e-vem dos anúncios, o caráter publicitário das intenções e as brigas pela paternidade da nova "política industrial", como foi apresentado por Lu Aiko Otta no jornal "O Estado de São Paulo" (13/04/2008, p. B9), sugerem falta de trabalho conjunto entre agentes públicos.

Muito já foi feito no Brasil para utilizar a demanda pública para o desenvolvimento produtivo e tecnológico nacional. Mas toda essa experiência acumulada tende a se perder se o país não aprender com o que já foi feito, com o que deu certo e com o que falhou. Esquecer o que foi excesso de intervencionismo, o que gerou corrupção e desperdício e o que foi um bom trabalho de desenvolvimento apoiado pelo Estado, e esquecer, sobretudo, que apoio temporário implica na obrigação da empresa competir no mercado global, pode levar o país a cometer os mesmos erros. Aprender com o passado pode evitar desgoverno, corrupção, excesso de "digirismo" e a tendência de sempre iniciar do zero ações públicas que nunca são finalizadas.