Título: À beira da guerra civil
Autor: Craveiro, Rodrigo
Fonte: Correio Braziliense, 05/03/2011, Mundo, p. 18

Vez ou outra, as bombas que caem a 25km de distância sacodem o consultório do médico Khalid Mustafa Abufalgha. No Hospital Central de Misrata, ele tenta manter a calma e fazer seu trabalho. Mas os últimos dias têm sido difíceis. ¿Estamos vendo casos horríveis de pessoas decapitadas por mísseis. Os militares também atiraram na cabeça e no peito de vários civis¿, desabafa, em entrevista ao Correio, por telefone. Desde o início do levante popular contra o ditador Muamar Kadafi, em 15 de fevereiro, 340 líbios deram entrada no hospital ¿ 40 deles já mortos. Faltam respiradores artificiais, medicamentos e até vacinas. Na periferia de Misrata, na costa noroeste da Líbia, as batalhas prosseguem. ¿Os militares atiram em todo mundo, inclusive em ambulâncias, e não nos permitem chegar perto das vítimas¿, denuncia o médico. Até o fechamento desta edição, a cidade seguia sob o domínio dos opositores ao regime. Khalid diz esperar uma ofensiva sangrenta a qualquer hora.

A 240km dali, em Zawiyah, forças leais a Kadafi mataram entre 30 e 50 civis, durante tentativa frustrada de retomar controle desse polo petrolífero. ¿Foi um ataque indescritível. Abriram fogo com metralhadoras¿, contou uma testemunha à rede de TV CNN. Um médico relatou à emissora norte-americana que no hospital havia um ¿rio de sangue¿. Por meio do microblogue Twitter, um opositor denunciou que milicianos armados com fuzis Kalashnikov e lança-foguetes abriram fogo da carroceria de 10 caminhões. Por volta da meia-noite (hora local), a eletricidade em Zawiyah foi cortada. O governo esperava reconquistar a cidade ainda durante a madrugada. Enquanto a revolta avançava no leste, as tropas governistas relatavam progressos no oeste.

O engenheiro de voo Jamal Equr, 53 anos, disse à reportagem que a situação em Benghazi (leste) ¿ a maior cidade da Líbia ¿ é ¿muito boa¿. ¿Os rebeldes controlam tudo. Pelo menos 10 mil pessoas estão se preparando para marchar até Trípoli¿, revela, também por telefone. Desde as 13h (hora de Brasília) de quinta-feira, a internet não funciona na Líbia e os contatos com o país são cada vez mais difíceis. No início da noite de ontem (horário local), duas explosões em um paiol de armas perto de Benghazi deixaram 17 mortos e 20 feridos. Jamal não escutou nada. Não ficou claro se a detonação foi um ato de sabotagem ou fruto de um bombardeio das forças pró-Kadafi. Um correspondente da agência de notícias France-Presse visitou o hospital e afirmou ter visto vários corpos no necrotério, alguns deles terrivelmente desfigurados e queimados.

Polo petrolífero Combates violentos também foram travados na área do porto de Ras Lanuf, outro importante polo produtor de petróleo, no centro-leste do país. A France-Presse apurou que os confrontos, a 10km da cidade, deixaram ¿vários mortos e feridos¿. Outras informações ¿ não confirmadas por fontes independentes ¿ davam conta que os simpatizantes de Kadafi viram-se obrigados a fugir para o deserto. Centenas de rebeldes armados com fuzis Kalashnikov e com baterias antiaéreas tomaram Ras Lanuf de assalto. Fontes ligadas à insurreição sustentam que mantêm total domínio sobre o local. Quando os opositores chegaram a uma base da região, encontraram 20 corpos algemados. Segundo o site revolucionário Libya 17th February 2011, os cadáveres pertenciam a militares do Batalhão Saadi Tabouli, baseado a 20km da cidade de Sirt. Ao desobedecer às ordens de atirar nos manifestantes, os soldados terminaram executados pelos colegas.

Às 8h de ontem (3h em Brasília), as forças leais a Kadafi executaram um bombardeio aéreo contra uma base militar tomada pelos rebeldes, perto de Ajdabiya, também no leste. ¿Uma bomba explodiu no lado de fora da base militar próxima de Ajdabiya¿, declara Mohamad Abdallah, que estava no último posto de controle da cidade. A 70km a oeste dali, em Masra El Brega, os homens do ditador não conseguiram recuperar terreno. ¿Acho que Brega foi perdida por ora¿, admite um dirigente governamental em Trípoli. ¿O oeste (do país) está totalmente sob controle do governo, o leste ainda é problemático¿, comenta.

Em Trípoli, o especialista em tecnologia da informação Hatem, 45 anos, saiu de casa às 10h30 (5h30 em Brasília) e se assustou com o que viu. ¿O número de forças de segurança era enorme. A intenção era intimidar as pessoas e evitar que se agrupassem¿, conta ao Correio, por telefone. Segundo ele, as autoridades conduziram os jornalistas estrangeiros até a Praça Argélia, a pouco mais de um quilômetro do centro da capital. ¿A intenção era mostrar que a cidade estava tranquila¿, diz. Após as orações das 13h30, Hatem juntou-se a manifestantes reunidos diante da mesquita. ¿Demorou 10 minutos para que nos atacassem com bastões. Eles nos forçaram a entrar na mesquita. Começaram a usar munição real e tivemos que correr¿, relata. Hatem afirma ter visto militares à paisana esfaqueando civis. ¿Esse regime não tem pudor em matar. Kadafi sabe como aterrorizar as pessoas¿, critica. A polícia também usou gás lacrimogêneo para dispersar a multidão.

Enviado da ONU é demitido » O líder líbio Muamar Kadafi demitiu o enviado da ONU no país, que se voltou contra o regime, mas as Nações Unidas ainda não aceitaram a mudança. De acordo com Martin Nesirky, porta-voz da ONU, o ditador enviou uma carta a Nova York afirmando que não reconhece mais o embaixador e ex-chanceler Abdurrahman Shalgham e o vice-embaixador Ibrahim Dabbashi como representantes da Líbia. Shalgham e Dabbashi deram apaixonados discursos condenando Kadafi como um ¿tirano¿ e pedindo a aplicação de sanções ao regime. Para o lugar do embaixador, Kadafi nomeou Ali Triki, ex-ministro das Relações Exteriores e ex-presidente da Assembleia Geral da ONU entre 2009 e 2010.