Título: Câmbio real e gastos públicos
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 11/08/2008, Opinião, p. A13
O Banco Central tem agido com responsabilidade e competência com o objetivo de trazer a inflação para a meta de 4,5% ao ano. Mas tem sofrido críticas. Uma delas é que, ao elevar a taxa de juros, atrai capitais que valorizam o real, expondo o país a riscos no balanço de pagamentos. Ninguém nega que juros mais elevados atraem mais capitais, mas fatos mostram que a maior parte das críticas dirigidas ao BC é descabida.
Primeiro, porque embora o câmbio real venha se valorizando, a elevação dos preços em dólares das exportações aumenta a sua competitividade. A intuição sugere que para um exportador é indiferente se um aumento de x% em sua receita de exportações é proveniente de uma depreciação de x% do câmbio real, ou de uma elevação de x% nos preços em dólares das exportações. Intuições somente são úteis quando não são negadas pelos fatos, e esta é uma delas. De fato, a econometria mostra que a resposta do quantum exportado ao câmbio real é igual à sua resposta aos preços em dólares das exportações. Esta propriedade nos permite construir um índice de competitividade das exportações, multiplicando seu preço em dólares pelo câmbio real. No gráfico 1, verifica-se que nos últimos anos o câmbio real medido com relação à cesta de moedas dos parceiros comerciais tem de fato se valorizado, mas o índice de competitividade tem crescido. Enquanto o câmbio real está mais de 20% valorizado com relação à base 100 do índice, colocada em março de 2002, nesse mesmo período ocorreu um ganho de competitividade superior a 40%. É claro que, se os preços das exportações desabassem sem que o câmbio real se desvalorizasse, os exportadores seriam penalizados, mas esta não é uma hipótese realista. Se os preços em dólares tiverem este comportamento, ocorrerá uma depreciação do câmbio real, estimulando as exportações. Esta é uma das vantagens do regime de câmbio flexível.
Mas as críticas não param neste ponto. Afinal, os déficits nas contas-correntes vêm crescendo, o que seria uma "prova" de que o real estaria sobrevalorizado. Há muita confusão neste ponto. Contabilmente, os déficits nas contas-correntes são iguais ao excesso das importações sobre as exportações de bens e serviços, mas economicamente eles são idênticos ao excesso dos investimentos (públicos mais privados) sobre as poupanças (pública mais privada). A China têm superávits nas contas-correntes porque suas poupanças superam os investimentos, e os déficits do Brasil e dos Estados Unidos ocorrem porque seus investimentos superam suas poupanças. No Brasil, a história dos últimos 60 anos mostra que sempre que as taxas de investimento se elevam, acelerando o crescimento do PIB, superam a taxa de poupança, conduzindo a déficits nas contas-correntes, que são tanto maiores quanto maiores forem as taxas de investimento.
O comportamento das poupanças nunca preocupou o grupo de economistas que partilha da crença religiosa de que "o investimento cria a sua própria poupança". Afinal, na origem desta proposição está o inventor da macroeconomia - Keynes -, e quem ousaria ir contra as suas idéias? Proposições científicas não têm este status porque são feitas por cientistas reputados, mas sim porque não são negadas pelos fatos. A Lei da Gravidade não é uma proposição científica porque foi feita por um cientista do calibre de Newton, mas sim porque ninguém na face da terra conseguiu ver um corpo "cair para cima". O gráfico 2 foi construído a partir dos dados trimestrais das contas nacionais do Brasil, mostrando no eixo horizontal as poupanças totais em proporção ao PIB, e no eixo vertical os investimentos totais em relação ao PIB. Contrariamente ao que ocorre na grande maioria dos países, nos quais um aumento na taxa de poupanças ocorre ao lado de um aumento na taxa de investimentos, no Brasil ocorre exatamente o oposto, ou seja, um aumento na taxa de investimentos ocorre ao lado de uma queda na taxa de poupanças. Ou seja, no Brasil os investimentos não criam a sua própria poupança, e seu comportamento tem reflexos importantes nas contas-correntes.
-------------------------------------------------------------------------------- O déficit nas contas-correntes brasileiras é originado na política fiscal de superávits primários insuficientes, não por "erros" do Banco Central --------------------------------------------------------------------------------
Mas, se o déficit nas contas-correntes é o excesso de investimentos sobre as poupanças, fica claro que uma elevação de um ponto de porcentagem do PIB na taxa de investimentos leva a um crescimento de mais do que um ponto de porcentagem no déficit nas contas-correntes. Ou seja, se a taxa de investimentos atual, de 18% do PIB, fosse repentinamente elevada para 21% do PIB, o déficit nas contas-correntes cresceria em mais de 3% do PIB, passando dos atuais 1,5% do PIB para mais de 4,5% do PIB.
Ora, a poupança total é a soma das poupanças pública e privada, e a poupança privada varia inversamente com o consumo privado, que por sua vez cresce com o aumento da renda real. Sabemos, por outro lado, que uma desvalorização cambial reduz os salários reais, e a sua valorização os eleva. A contínua valorização do câmbio real, que está associada aos déficits crescentes nas contas-correntes, é uma das causas da contínua elevação dos salários reais, elevando o consumo e reduzindo a poupança privada. Conseqüentemente, se quisermos elevar os investimentos sem reduzir as poupanças totais, o governo terá que elevar a sua poupança, aumentando os superávits primários para valores bem mais elevados do que os atuais.
Ou seja, o que está por trás do crescimento dos déficits nas contas-correntes, no Brasil é a política fiscal, com superávits primários insuficientes, e não eventuais "erros" do Banco Central na condução da política monetária.
Affonso Celso Pastore e Maria Cristina Pinotti são economistas e escrevem mensalmente às segundas.