Título: Aliados e rebeldes lutam pela Líbia
Autor: Craveiro, Rodrigo
Fonte: Correio Braziliense, 03/03/2011, Mundo, p. 26

REVOLTA NO ORIENTE MÉDIO

Depois de 16 dias de levante popular, um conflito militar de grande escala ou mesmo uma intervenção externa assombra cada vez mais a Líbia. Na tentativa de retomar o controle de Ajdabiya e Brega, o ditador Muamar Kadafi ordenou que suas forças lançassem mísseis sobre as duas importantes cidades controladas pela oposição. Por sua vez, os rebeldes pediram à Organização das Nações Unidas (ONU) que autorize o bombardeio de tropas leais ao regime. Dois navios de guerra norte-americanos, duas fragatas (britânica e canadense) e um porta-helicópteros francês devem chegar à região nos próximos dias. No front interno, os combates entre insurgentes e governistas alcançaram ontem o leste da Líbia. ¿Brega, a 80km daqui, caiu nas mãos dos mercenários de Kadafi¿, admitiu o opositor Ibrahim à agência France-Presse, enquanto segurava um fuzil Kalashnikov, em Ajdabiya, 850km a leste da capital, Trípoli. Ante as denúncias de sistemáticas violações dos direitos humanos, o Tribunal Penal Internacional (TPI) ¿ baseado em Haia ¿ anunciou a abertura de uma investigação de Kadafi e de seu círculo íntimo.

¿Kadafi é uma pessoa que precisa ser investigada, porque é o líder máximo da Líbia¿, declarou o argentino Luis Moreno Ocampo, promotor do TPI, em entrevista à rádio espanhola Cadena SER. ¿Temos um grupo de pessoas que compõem seu círculo íntimo e outro grupo de pessoas que são chefes de inteligência¿, acrescentou. Segundo Ocampo, o inquérito é motivado pela existência de elementos que sugerem crimes contra a humanidade, incluindo o ataque maciço ou sistemático à população e o tiroteio contra manifestantes. Em Paris, a Liga Líbia dos Direitos Humanos anunciou que a violenta repressão do regime de Muamar Kadafi já matou 6 mil pessoas ¿ 3 mil na capital, Trípoli, e 2 mil em Benghazi. A informação, no entanto, não pôde ser confirmada por uma fonte independente.

Em Benghazi, o engenheiro de voo Jamal Equr, 53 anos, aguarda o momento de ir à guerra. Por telefone, ele contou ao Correio que soube dos primeiro combates em Brega, a 250km dali. ¿Tropas e caças atacaram os moradores, que defenderam a cidade¿, disse. ¿Estamos alertas e prontos para qualquer coisa¿, acrescentou. Jamal relatou que algumas pessoas celebram a vitória, à espera do grande protesto marcado para amanhã. ¿Alguns tentam aprender a manusear armas¿, disse, ao admitir que espera um triunfo da oposição para os próximos dias. Em Ajdabyia, a 160km a sudoeste, um depósito de munições voltou a ser bombardeado pela força aérea. Cidadãos contaram que o alvo era, na verdade, uma base militar conquistada pelos rebeldes. De acordo com a agência France-Presse, caças dispararam mísseis contra uma praça de Brega, onde rebeldes comemoravam a vitória sobre os homens leais ao regime. Descalços e com machetes nas mãos, os insurgentes conseguiram liberar a cidade petroleira e expulsar os soldados.

Pressionado pela comunidade internacional, Kadafi voltou a dominar os holofotes. Vestido com uma túnica com listras negras e brancas e exibindo um turbante cor de café, falou sem parar por quase três horas, durante um evento de celebração do 34º aniversário do ¿advento do poder das massas¿. ¿Combateremos até o último homem e a última mulher¿, avisou o ditador, acusando novamente a rede terrorista Al-Qaeda de promover os distúrbios. ¿Células adormecidas da Al-Qaeda, seus elementos, se infiltraram gradualmente¿ Eles acreditam que o mundo é deles, lutam em qualquer lugar, os serviços de inteligência os conhecem pelo nome¿, afirmou. Kadafi disse que o levante começou na cidade de Ajdabyia, depois que ¿células adormecidas¿ roubaram as armas das delegacias. E explicou que sua renúncia seria impossível, antes de garantir que não exerce a autoridade no país desde 1977. ¿Muamar não tem o poder de verdade para renunciar a ele¿, garantiu, referindo-se a si mesmo.

Sangue O dirigente elevou o tom ao comentar sobre uma intervenção militar estrangeira. ¿Entraremos numa guerra sangrenta e milhares e milhares de líbios morrerão se os Estados Unidos ou a Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) entrarem¿, ameaçou Kadafi, que prometeu ¿defender a Líbia do norte ao sul¿ e comparou o cenário possível a ¿um novo Vietnã¿. ¿Vamos meter nossos dedos nos olhos daqueles que duvidam que a Líbia seja governada por alguém além de seu povo¿, avisou. Aos gritos da multidão de ¿Deus, Muamar, Líbia ou nada¿, Kadafi anunciou uma ¿anistia aos que abandonarem as armas¿. E rechaçou as denúncias de massacre da população civil. ¿Pedimos ao mundo, às Nações Unidas, que enviem uma equipe de verificação para investigar¿, sugeriu.

Para o tunisiano Jabeur Fathally, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Ottawa (Canadá), o regime de Kadafi é desprovido de sentido. ¿Kadafi é tudo e nada o mesmo tempo. Ele pinta um governo-fantasma: nenhum Parlamento, nenhum governo, nenhum presidente. Tenta incutir a ideia de que uma milícia desconhecida está matando manifestantes em Trípoli e em Benghazi¿, opinou. Ex-oficial da Agência Central de Inteligência (CIA) e líder das investigações da explosão do voo Pan Am 103 ¿ que matou 270 pessoas, em 21 de dezembro de 1988 ¿, Vincent Cannistraro acredita que Kadafi pode resistir por semanas. ¿Ele tem uma fortaleza nos quartéis de Aziziyah, em Trípoli. É defendido pelas Brigadas Khamis, a guarda de elite presidencial, e pagou mercenários do Níger, do Sudão e do Mali para combater os opositores¿, comentou.

Pontos de vista

"A abertura de um inquérito por parte do Tribunal Penal Internacional é uma boa jogada, mas pouco efeito sobre uma renúncia. O processo demora muito e civis líbios já estão sendo assassinados. A Comissão de Direitos Humanos da ONU será bem-sucedida em iniciar um julgamento. Os próprios desertores de Kadafi estão fornecendo evidências de que esse homem se envolveu em um grande número de crimes internacionais. De fato, o ditador líbio desceu à insanidade. Não haverá intervenção militar externa, mesmo que a oposição clame por bombardeios contra os quartéis de Aziziyah, em Trípoli ¿ a fortaleza de Kadafi. Há uma preocupação de que ele possa ordenar a liberação de gás mostarda, caso as forças estrangeiras tentem uma ofensiva.¿

Vincent Cannistraro, ex-agente da CIA e líder da investigação de inteligência do bombardeio do voo Pan Am 103, em Lockerbie (Escócia)

¿Existem provas de horríveis crimes de guerra e contra a humanidade. Nesse momento, Kadafi possui a habilidade de permanecer no poder por um tempo indeterminado. Se ele não for morto na Líbia, poderá escapar para a Nicarágua ou a Venezuela. Alguns de seus filhos tentam convencê-lo a isso. Diante desse cenário, Kadafi seria perseguido pelo Tribunal Penal Internacional. Muitos governos do Ocidente aguardam o momento de julgá-lo. Os EUA e a França o acusam de planejar e financiar a explosão de aviões. Qualquer que seja a situação, Kadafi está acabado.¿

Noomane Raboudi, tunisiano, doutor em estudos árabes pela Universidade de Ottawa (Canadá)