Título: Ministério do Trabalho se delega mais poderes
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 20/08/2008, Opinião, p. A14

Todo dia útil, antes da Bolsa de Valores fechar, ou de se saber a taxa de câmbio média do dia, terá nascido um novo sindicato no país - 22 por mês, menos da metade dos 50 pedidos de registro mensais que chegam ao Ministério do Trabalho. Para dar maior eficiência às concessões de registro, o ministério se autoconferiu, pela Portaria nº 186, de abril deste ano, o poder de mediar partes em disputa por um pedaço de base sindical. Aliás, não só de mediar, mas de ser a última palavra da disputa, que antes acontecia integralmente na Justiça do Trabalho. A decisão final, a partir da edição da portaria ministerial, passou a ser do ex-presidente da Força Sindical Luiz Antônio Medeiros, hoje secretário das Relações de Trabalho.

A portaria, além de inconstitucional, é um passo atrás em relação à autonomia sindical definida pela Constituição de 1988. Antes da Constituinte, os sindicatos eram criados de acordo com a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que dava poderes ao Ministério do Trabalho para reconhecer as entidades que pediam o registro e, após o processo, conceder, ou não, os certificados - apenas depois disso os sindicatos passavam a ter existência legal.

Esse modelo varguista dava enorme margem de manipulação dos sindicatos pelo governo. Era possível ao ministério, por exemplo, dividir uma categoria onde emergissem forças sindicais mais combativas estimulando "pelegos" a entrarem com pedidos de registro de sindicatos, que seriam prontamente aprovados pelo governo, reduzindo o poder ofensivo da base original. O ministério também atuava como filtro, quando o pedido de registro vinha de facções sindicais antigovernistas.

A liberdade sindical foi uma das grandes bandeiras da luta contra a ditadura, reivindicação amplificada por um movimento sindical que, nos anos 70, conquistava autonomia enfrentando as leis da ditadura. A Constituinte de 1988 respondeu a esse movimento. A Constituição em vigor define que o Ministério do Trabalho deve receber os pedidos de registro, mas é responsável apenas pela verificação do princípio da unicidade sindical - isto é, se não existe outro sindicato, já registrado, representando a mesma base.

Uma mera portaria ministerial, agora, dá mais um passo numa tendência assustadora do atual governo, de restauração da lógica varguista de controle sindical pelo Estado. O surpreendente é que existe uma convergência enorme do governo e das centrais sindicais que, até bem pouco, sobreviviam sem serem sacramentadas pelo Ministério do Trabalho e à margem da definição constitucional de que deve existir unicidade sindical - a rigor, por essa norma, deveria existir uma única central. A lei tem sido ajeitada de acordo com os interesses imediatos das diversas tendências. Recentemente, foi aprovada a lei que deu existência institucional às centrais, desde que elas obedeçam a critérios outros que não a unicidade. As seis que conseguiram registro do ministério passaram a partilhar, junto com os sindicatos, do imposto sindical, que denunciavam antes como um mecanismo do governo autoritário para submeter economicamente as entidades sindicais, e portanto contra a autonomia.

Assim, os sindicatos foram poupados de viver no mundo real, ou seja, jamais foram obrigados a viver apenas do que é arrecadado de forma voluntária na sua base; e as centrais, que viviam das contribuições voluntárias dos sindicatos a elas filiados, passaram a comer o imposto pelas bordas. Do bolo de R$ 1,34 bilhão de imposto sindical, os sindicatos terão R$ 810 milhões, e as centrais, R$ 56,9 milhões ("Brota um sindicato por dia", "O Globo", 19/08, página 3).

A justificativa para a nova portaria é a de dar agilidade aos pedidos de registro que se acumulam nas gavetas do ministério - existem 801 pedidos protocolados. Acumular poder em nome da eficiência, contudo, é injustificável. A arbitragem vai acabar sendo de mentirinha, já que a parte que perderá o litígio por poder autoconferido pelo secretário Medeiros vai recorrer à Justiça do Trabalho. O fato de o secretário com poder de arbítrio ser originário da Força Sindical é outro grande problema. É difícil imaginar que ele possa ser um juiz nessas circunstâncias. O juiz está lá no TST e sempre julgou esses casos. Deve continuar exercendo esse papel, o que é o natural. Não se pode imaginar a Justiça subordinada ao poder de arbítrio de um eventual secretário de ministério.