Título: Europa começa a rever a sua relação com a Rússia
Autor: Walker, Marcus
Fonte: Valor Econômico, 21/08/2008, Internacional, p. A11

A primeira-ministra alemã, Angela Merkel, está emergindo como pivô na remodelação das relações entre o Ocidente e Moscou.

A intervenção militar russa na Geórgia mudou o debate na Alemanha - o país mais populoso da União Européia, e sua maior economia - sobre como lidar com uma Rússia que procura cada vez mais se impor.

Graças ao conflito na Geórgia, a visão profundamente cética de Merkel quanto à política externa russa passou a ganhar força sobre as antigas esperanças de outros políticos alemães de um relacionamento especial com o Kremlin. Isso está criando nas capitais européias uma nova massa crítica que vê a Rússia como um problema, em vez de um parceiro.

Durante anos, a UE se dividiu entre membros fundadores como a Alemanha, a França e a Itália, que eram relutantes em irritar a Rússia, e novos membros da Europa Central e do Leste, que viam a Rússia como uma ameaça. O Reino Unido havia recentemente se alinhado mais com os EUA em relação à Rússia, após uma série de desavenças bilaterais com o Kremlin. O Reino Unido parece agora estar se aproximando da nova visão predominante na Europa, liderada por Merkel, que quer conter o expansionismo russo sem tratar o país como pária.

Ainda há grandes questões sobre o que a Alemanha e a Europa podem fazer para domar uma Rússia fortalecida por suas riquezas de petróleo e gás natural e determinada a reconquistar parte da influência geopolítica que perdeu depois do colapso da União Soviética. Mas um novo realismo está substituindo o idealismo da Europa pós-Guerra Fria quanto à incorporação da Rússia como um membro pleno da família.

"Merkel é enormemente importante para recalibrar a política da Europa para a Rússia", afirmou Pawel Swieboda, diretor do centro de estudos demosEuropa, de Varsóvia. "O sentimento 'tudo azul' claramente desapareceu e não vai retornar."

A França também adotou um tom mais agudo em relação à Rússia nos últimos dias, depois que a Alemanha exibiu sua impaciência com as ações militares russas na Geórgia. Autoridades georgianas dizem que se surpreenderam com a força da demonstração de solidariedade de Merkel à Geórgia no último domingo, quando ela visitou Tbilisi, a capital do país.

Merkel, que condenou a invasão russa ao território georgiano, chamando-a de "desproporcional", prometeu em Tbilisi que a Geórgia faria parte algum dia da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), apesar da oposição russa. Ela propôs que a Otan ajude na reconstrução do Exército e da infra-estrutura da Geórgia, arrasados pelo conflito com a Rússia. Ministros de relações exteriores da Otan concordaram com um pacote de ajuda numa reunião em Bruxelas na terça-feira.

A líder alemã não tinha se dado bem com o presidente georgiano, Mikheil Saakashvili, em encontros anteriores, em parte porque este quis lhe dar lições sobre economia, segundo pessoas familiarizadas com as reuniões. E Merkel foi crucial no bloqueio à proposta da Geórgia, apoiada pelos EUA, de iniciar negociações para aderir à Otan na reunião de abril em Bucareste. Ela disse que um país com disputas territoriais não resolvidas não estava pronto para entrar na aliança.

Autoridades alemãs disseram na época que ela também queria dar ao novo presidente russo, Dmitri Medvedev, tempo para cumprir as promessas de reformas liberais. Numa tensa reunião na cidade russa de Sochi, na sexta-feira passada, Merkel disse a Medvedev que a imagem da Rússia na Europa se deteriorava a cada dia que os tanques do país permaneciam na Geórgia, segundo funcionários do governo alemão.

Mas o lobby empresarial alemão se opõe a medidas políticas que possam irritar Moscou. A economia alemã depende bastante de exportações, que correspondem a 47% do Produto Interno Bruto, e a Rússia é um dos mercados de mais rápido crescimento para as empresas alemãs. A Alemanha também obtém 37% de seu gás natural e 31% de seu petróleo da Rússia.

Autoridades de Estados satélites da antiga União Soviética, como Polônia e Estônia, que se juntaram à UE e à Otan e há muito advertiam para o expansionismo russo, dizem que estão satisfeitas com a maneira como Merkel lidou com a Rússia nas últimas duas semanas. "A Alemanha está adotando uma linha mais dura do que esperávamos, considerando seu histórico", disse um alto funcionário do governo polonês.

Merkel é a primeira líder alemã que cresceu na Alemanha Oriental, comunista, uma experiência que a deixou instintivamente pró-EUA e desconfiada do poder russo, diferentemente de muitos políticos da capitalista Alemanha Ocidental, que por muito tempo tentaram agir como uma ponte diplomática entre Washington e Moscou.

"Merkel é um caso especial, e você pode sentir que, para ela, diferentemente de para nós no Ocidente, imagens de tanques russos na Geórgia trazem memórias da [ocupação soviética que acabou com] a Primavera de Praga e outros acontecimentos", diz Alexander Rahr, diretor do programa de Rússia do Conselho Alemão de Relações Exteriores. "Seus instintos estão mais próximos dos de poloneses ou estonianos do que de muitos políticos europeus do Ocidente."

Se a mudança da Alemanha se mostrar duradoura, reduzirá as divergências em relação à Rússia entre antigos e novos membros da UE. Também pode aproximar a UE dos EUA em relação à necessidade de se prevenir que a Rússia reassuma o controle sobre vizinhos como a Geórgia e a Ucrânia. Mas Merkel e seus colegas da UE continuam mais relutantes que a Casa Branca em punir a Rússia com um tapa na cara diplomático, como expulsá-la das reuniões do Grupo dos Oito países mais ricos (o G-8).

"O objetivo não é isolar a Rússia", diz o porta-voz de Merkel, Thomas Steg. "Sabemos que muitas questões internacionais só podem ser resolvidas em conjunto com a Rússia." Autoridades alemãs dizem que precisam do apoio russo em questões como o programa nuclear do Irã e um acordo pós-Kyoto sobre aquecimento global.

Além do mais, Merkel enfrenta restrições na Alemanha. Sua fragmentada coalizão de governo inclui os social-democratas, mais pró-Rússia. O ministro das Relações Exteriores, Frank-Walter Steinmeier, que deve concorrer a chanceler contra Merkel nas eleições do ano que vem, tem sido mais contido na crítica à Rússia por causa do conflito na Geórgia.

(Colaborou Marc Champion, de Tbilisi, Geórgia)