Título: Excessos castigados
Autor: Ribeiro, Alex
Fonte: Valor Econômico, 22/08/2008, Eu & Investimento, p. 5
Os economistas já abandonaram há muito a ambição de impedir o surgimento de novas bolhas, que se confundem com a própria história dos mercados financeiros. O exemplo clássico é a mania das tulipas, na Holanda do século XVII, em que investidores compravam bulbos por preços exorbitantes na expectativa de vendê-los mais caro quando as flores abrissem. A bolha da vez é a do mercado americano de hipotecas, com a crise de liquidez subseqüente, que agora completa um ano, a duras penas controlada pelos bancos centrais americano e europeu. Seus desdobramentos mantêm os mercados de crédito tomados pela insegurança, as bolsas patinam em números de franca mediocridade e economias de todos os tamanhos perdem fôlego. No curto prazo, a direção é uma só - para baixo
Neste exato momento, especialistas de todas as partes do mundo juntam os cacos para entender o que deu errado com a miríade de inovações financeiras que, antes de jogar a economia global na primeira grande crise deste milênio, permitiu que parcelas mais pobres da população americana comprassem a casa própria.
Rogerio Pallatta / Valor Marcio Garcia, da PUC-Rio: O Brasil entrou tarde na securitização, mas agora "podemos nos beneficiar do aprendizado que ocorre nas economias desenvolvidas" Impotentes para evitar o surgimento de novos desequilíbrios, os reguladores internacionais se agarram a um ponto de honra: impedir que a próxima crise seja cópia exata da mais recente. Antecipam-se excessos regulatórios, como pesadas exigências de capital. "Crises financeiras são como epidemias", diz Alessandra Montini, professora de finanças da Fundação Instituto de Administração (FIA). "Sabemos muito bem como combater a última delas, mas não temos muita idéia do que está por vir."
O economista austríaco Joseph Schumpeter associou as crises financeiras às novas tecnologias. Os investidores superestimam os lucros potenciais das inovações, aplicam recursos em excesso e inflam os preços de ativos. Quando a bolha estoura, os investidores perdem dinheiro e as economias entram em colapso. Mas as novas tecnologias sobrevivem e continuam a criar riquezas.
Bloomberg Charles Prince, então CEO do Citigroup, antes de perder o emprego depois de assinar balanço com resultados prejudicados por operações com CDOs: "Enquanto a música estiver tocando, continuamos dançando" Um caso exemplar é o das ferrovias na Inglaterra de 1845, relatado pelo historiador Edward Chancellor no livro "Salve-se Quem Puder, Uma História da Especulação Financeira". O surgimento da locomotiva a vapor criou uma febre, com reuniões em igrejas para levantar capitais. As perdas foram pesadas e há registros de suicídios, mas a malha ferroviária inglesa foi multiplicada por quatro entre 1840 e 1855, para 12,8 mil quilômetros.
Outro exemplo mais recente, dos anos 1990, é a crise da internet. Sua repercussão mais conhecida é o prejuízo causado a investidores e à economia dos Estados Unidos. Mas os cabos ópticos enterrados no território americano geraram, e continuam a gerar, saltos de produtividade.
A crise do "subprime" também ocorre na esteira de criações admiráveis. São produtos da engenharia financeira, talvez não tão visíveis a olho nu como os inventos das engenharias de transportes e de telecomunicações, mas que também trazem bem-estar.
Até os anos 1960, tomar um empréstimo nos Estados Unidos para comprar uma casa era um processo rudimentar. O cliente procurava uma agência e respondia a um imenso questionário. A análise da papelada levava semanas, num trabalho em que contava muito a visão subjetiva do funcionário do banco. Não eram incomuns as queixas sobre discriminação, tanto que em 1974 e em 1976 foram aprovadas leis que determinaram tratamento igualitário aos clientes, independentemente de raça ou religião.
Da porta do banco para dentro, também faltava sofisticação. "Nos Estados Unidos, vigorava um sistema de crédito direcionado", diz o consultor da vice-presidência de governo da Caixa Econômica Federal, Teotônio Costa Resende. A regulação era herança do ímpeto intervencionista surgido após o "crash" de 1929. "No Brasil, ainda é assim. Os bancos ficam muito limitados na sua capacidade de emprestar", afirma, referindo-se ao Sistema Financeiro da Habitação (SFH).
No fim dos anos 1960, o sistema começou a mudar, quando ganhou impulso a chamada securitização, que permite transferir operações de crédito do balanço dos bancos para o mercado de capitais. O pulo-do-gato é transformar financiamentos imobiliários, que são ativos típicos de bancos, em produtos financeiros ao gosto dos mercados de capitais - títulos que podem ser negociados a qualquer tempo pelos investidores, como fundos de previdência e seguradoras.
O Brasil entrou tarde na securitização. A lei que trata do assunto, criando o Sistema Financeiro Imobiliário (SFI), é de 1997. "Podemos nos beneficiar do aprendizado que ocorre nas economias desenvolvidas", diz o economista Márcio Garcia, da PUC-Rio.
Outra inovação são os "scoring models", modelos estatísticos que fazem avaliação de risco. Sai de cena o bancário que dizia "sim" ou "não" aos clientes. Computadores são alimentados com dados dos pleiteantes, como idade, escolaridade e perfil de consumo. A máquina compara as informações com as fichas de outras pessoas, estabelece relações estatísticas e define em questão de minutos os limites de crédito. "Vez ou outra, esses modelos podem errar", conta Rezende. "Mas, nos grandes números, eles têm precisão incrível." No Brasil, a tecnologia de "credit scoring" é amplamente utilizada.
Na década de 1970, começaram a se difundir nos Estados Unidos os financiamentos imobiliários flexíveis. As possibilidades são inúmeras. Clientes podem contratar empréstimos com amortizações que começam dentro de alguns anos. Ou fazer dívidas com prestações que sobem junto com as taxas básicas de juros definidas pelo Federal Reserve (Fed), o banco central americano.
Esse conjunto de inovações serviu, em 1995, para alavancar os financiamentos imobiliários "subprime". A securitização abriu aos bancos as vastas somas de recursos do mercado de capitais. Os "scoring models" reduziram entre US$ 300 e US$ 650 os custos de geração de cada empréstimo, segundo estimativa feita em 1996 pela Freddie Mac, uma securitizadora americana. Também aumentaram a capilaridade na oferta do crédito imobiliário e tornaram o trabalho impessoal, reduzindo a discriminação contra as minorias. Já os contratos flexíveis permitiram que clientes tomassem empréstimos com juros inicialmente mais baixos, na esperança de que as contas fechassem mais adiante se o preço dos imóveis subisse.
O volume contratado no mercado "subprime" aumentou de US$ 65 bilhões em 1995 para um pico de US$ 591 bilhões em 2006, de acordo com a Inside B&C, publicação especializada neste nicho de mercado. O que se contrata de "subprime" em um ano nos Estados Unidos representa 20 vezes o estoque de crédito imobiliário no Brasil, que somava US$ 30 bilhões em junho.
O ingrediente final para alavancar os financiamentos "subprime" foram as baixas taxas de juros. O ex-presidente do Fed, Alan Greenspan, tem sido apontado como responsável pela criação da bolha, ao manter uma política monetária excessivamente relaxada. A ampla liquidez aumentou o apetite dos investidores por ativos de maior rendimento, criando campo fértil para novas tecnologias financeiras.
Uma das inovações foram os CDOs ("collateralized debt obligations"), que estão no centro da crise do "subprime". É um instrumento que permitiu aos bancos empacotar financiamentos "subprime" - portanto, com alto risco de inadimplência-, e vendê-los aos investidores como se fossem ativos de baixíssimo risco.
O trabalho consiste em fatiar pacotes de financiamentos, tendo cada parte resultante um nível de risco diferente. Quem tem apetite por risco comprava a primeira parte, conhecida pelo sugestivo nome de "lixo tóxico", por que assumia as primeiras perdas em caso de inadimplência nos financiamentos imobiliários. A segunda parte assumia as perdas a partir de então, e por isso era considerada de menor risco. A configuração se repetia nas fatias seguintes do CDO, até chegar nos segmentos sênior, de baixíssimo risco. "No Brasil, esse modelo é aplicado nos fundos de investimento em direitos creditórios (FIDCs)", conta Alexandre Jorge Chaia, professor de finanças do Ibmec São Paulo.
Do início desta década ao estouro da bolha, os CDOs tornaram-se um dos ativos mais desejados do mercado. Bancos, seguradoras e fundos de pensão, cujos estatutos limitavam a exposição a riscos, podiam investir em segmentos sênior de CDOs, com segurança comparável a títulos do Tesouro americano, mas com promessa de retornos maiores. O volume vendido em 2006 é estimado em US$ 503 bilhões, segundo dados do Morgan Stanley.
Os investidores usaram da engenharia financeira para empilhar o máximo possível desses papéis. Foi quando se disseminaram os chamados veículos de investimento, conhecidos, em inglês, como "conduites" e SIVs ("structured investment vehicles"). Trata-se de criações do fim da década de 1990, que, na essência, não passam de empresas constituídas com o objetivo de carregar aplicações financeiras.
Para os bancos, foi uma forma de comprar CDOs e deixá-los fora dos balanços, driblando a exigência de capital de Basiléia, um acordo internacional que visa dar solidez ao sistema bancário. Para os "hedge funds", era o caminho para alavancar as operações. Como os segmentos sênior tinham baixo risco, podiam ser usados como garantia para tomar financiamentos baratos para comprar mais CDOs.
O pleno funcionamento desses instrumentos financeiros deu acesso a recursos quase ilimitados para financiamentos imobiliários. Houve ganhos palpáveis para a economia real. O presidente do Fed, Ben Bernanke, assinalou, logo antes do estouro da crise, que as inovações no mercado de crédito aumentaram de 65% para 69% a proporção de famílias americanas donas da casa em que moravam, entre 1995 e 2006.
Foram essas mesmas inovações, porém, que levaram ao estouro da crise do "subprime", em agosto de 2007. O Fed aumentou os juros, afetando a capacidade de pagamento dos mutuários. A queda dos preços dos imóveis encerrou a mágica segundo a qual a valorização das casas permitia aos mutuários refinanciar dívidas e continuar adimplentes.
"De vez em quando, a indústria farmacêutica aparece com medicamentos revolucionários, que prometem curar doenças importantes, mas acabam causando efeitos colaterais terríveis", afirma Garcia. "O remédio sai das prateleiras, os laboratórios intensificam as pesquisas e surge uma outra fórmula. As novas tecnologias financeiras também tendem a ressurgir de uma forma mais equilibrada."
O economista cita os excessos cometidos nos anos 1980 na negociação dos "junk bonds", títulos de empresas de alto risco. Seu criador, o gênio das finanças Michael Milken, foi sentenciado a dez anos de prisão, em uma série de escândalos envolvendo não apenas "junk bonds", mas também informações privilegiadas. Os "junk bonds" passaram por um período de depuração e hoje são um instrumento importante para as novas empresas acessarem os mercados de capitais.
Chaia, do Ibmec, diz que o problema não é com os instrumentos financeiros em si, mas está na definição dos preços dos ativos. Não se estaria assistindo à crise, argumenta, se os riscos tivessem sido adequadamente medidos. Os investidores teriam exigido retornos maiores, a alavancagem teria sido menor e bancos teriam separado mais capital para cobrir possíveis perdas.
A questão que resta, portanto, é por que os sofisticados modelos estatísticos não mediram os riscos. "Os modelos não são máquinas de prever o futuro", explica Alessandra Montini, da USP. "Eles tomam o passado como a melhor aproximação do futuro, mas sempre surgem novos eventos que não aconteceram no passado recentemente." Desde o "crash" de 1929 não havia uma queda nacional de preços de imóveis nos Estados Unidos.
Existem, porém, ferramentas estatísticas que procuram antecipar as surpresas do futuro. Monte Carlo, cidade do principado de Mônaco conhecida pelos seus cassinos, é também o nome de um método que simula combinações de acontecimentos aleatórios que podem afetar o preço de ativos financeiros, como CDOs. Computadores são alimentados com séries de dados, como, por exemplo, a evolução dos preços do petróleo e da inadimplência no crédito habitacional. As máquinas rodam algo como 100 mil combinações aleatórias com esses informações para checar se os CDOs sobreviveriam aos piores cenários econômicos.
"O computador faz suas simulações, mas quem alimenta a máquina com os dados é o homem", afirma Alessandra. O período de calmaria no mercado de hipotecas, valorização dos preços dos imóveis e baixas taxas de juros tornou pouco provável um cenário adverso.
"Se fosse possível prever com exatidão o que vai acontecer, por definição não haveria risco", diz Chaia, do Ibmec. "Todos os ativos seriam livre de risco e pagariam apenas a remuneração dos títulos do Tesouro americano."
O "credit scoring" é outra das tecnologias mal usadas. "Houve descuido na coleta dos dados que alimentaram os modelos", afirma Rezende, da Caixa. "Repassaram o trabalho para os corretores de imóveis, que estavam interessados em vender, não em fazer análise segura de crédito".
Como nas crises que ocorreram desde a década de 1990, sobra um pouco da responsabilidade também para as agências de classificação de risco. O mercado de CDOs não é supervisionado diretamente por nenhuma autoridade. Do ponto de vista dos investidores, os CDOs são instrumentos financeiros opacos. Muitos aplicaram apenas com base nas notas das agências, que atribuíam baixíssimo risco. Além de subestimar as perdas potenciais, as agências são acusadas de conflito de interesses, por que assessoraram os bancos no desenho e no fatiamento dos CDOs.
Os bancos operaram nas franjas da regulamentação quando sobrecarregaram os veículos de investimentos, como SIVs e "conduites", para comprar papéis vinculados a créditos "subprime".
Se o passado for um bom guia para prever o futuro, esses exageros cometidos pelo mercado serão punidos com exageros na regulação. O "crash" de 1929 levou à aprovação, pelo Congresso americano, de uma lei que separava os bancos comerciais dos bancos de investimento. Mais recentemente, os escândalos corporativos, entre eles o caso Enron, desencadearam a aprovação da Lei Sarbanes-Oxley, que ampliou as exigências contábeis.
As normas mais duras, entretanto, tendem a ser relaxadas em períodos seguintes, quando fica claro que a segurança dada pela regulação restritiva não compensa os custos criados. No caso da Sarbanes-Oxley, as regras mais rígidas levaram empresas a migrar de Nova York para praças mais liberais, como Londres.
O consenso que surge da crise do "subprime" é que será necessário reforçar a capitalização das instituições financeiras. Uma proposta bastante discutida nos fóruns internacionais é exigir mais capital dos bancos quando os ventos da economia são favoráveis, para terem gordura a ser queimada quando a próxima crise acontecer. Existem propostas também para exigir mais capital para os riscos de liquidez, baseadas no diagnóstico de que, em agosto de 2007, o mercado travou por falta de liquidez.
O maior risco é pesar a mão nas exigências e encarecer a oferta de crédito imobiliário. "O desafio é encontrar o equilíbrio perfeito que torne o sistema financeiro mais seguro e preserve os benefícios da expansão do crédito", afirma o diretor de Normas do Banco Central, Alexandre Tombini.
Depois que o Fed socorreu bancos de investimentos com dinheiro público, parece natural que passe a monitorar as atividades desse segmento do mercado para ver se ali não há excessos. Nos últimos anos, houve uma tendência de separação dos órgãos supervisores: algumas agências olham apenas o mercado de capitais, outras as seguradoras, outras os bancos e os bancos centrais se concentram no controle da inflação. "É cada vez mais importante a troca de informações entre essas diferentes áreas de supervisão", afirma Tombini.
Pouco pode ser feito, porém, para evitar o surgimento de bolhas diferentes. Os investidores fazem julgamentos individuais sobre os retornos que podem ser extraídos dos ativos - e seria ingênuo, e talvez arrogante, um supervisor dizer que a recompensa prometida é ilusória. "Enquanto a música estiver tocando, continuamos dançando", disse o então presidente mundial do Citigroup, Charles Prince, numa frase que marcou a crise do "subprime". Prince renunciou ao cargo, no final de 2007, quando foram conhecidos os resultados operacionais do grupo no terceiro trimestre do ano, com perdas relacionadas, em grande parte, a operações com CDOs.
O economista inglês Tim Harford conta, em seu livro "O Economista Clandestino", como um executivo do mercado financeiro se deu mal ao tentar nadar contra a corrente. Tony Dye, estrategista da gestora de recursos de terceiros Philips & Drew, resgatou 7 bilhões de libras que estavam investidos no mercado acionário depois de concluir que, ao atingir os 4 mil pontos em 1996, a bolsa londrina estava cara.
Deixou tudo aplicado em renda fixa e assistiu, nos anos seguintes, ao índice de ações seguir sua tendência de alta, chegando a 6,4 mil pontos em junho de 2000. Com o estouro da bolha da internet, a bolsa caiu a uma posição mínima, de 3,3 mil pontos. Os clientes da Philips & Drew saíram-se melhor com a estratégia conservadora do que se tivessem continuado no mercado acionário. Já Tony Dye perdeu o emprego meses antes do estouro da bolha, depois de virar alvo de chacota nos jornais e perder boa parte dos clientes que investiam nos fundos por ele administrados.