Título: Metade da carne do país não tem fiscalização
Autor: Ribas, Sílvio
Fonte: Correio Braziliense, 06/03/2011, Economia, p. 10

CONSUMIDOR Vigilância sanitária não alcança todos os elos da cadeia produtiva, responsabilidade dividida com estados e municípios. Pecuaristas exigem controle

Nada menos do que metade de toda a carne produzida no país e que vai parar no prato dos brasileiros escapa de qualquer avaliação pelos inspetores federais da vigilância sanitária. Em razão de limites constitucionais, a União inspeciona apenas carnes processadas em indústrias e frigoríficos que vendem para outros estados e ao exterior. O que foge à jurisdição do Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), por circular exclusivamente na cidade ou na região, é responsabilidade de órgãos locais, sobretudo, aqueles vinculados aos municípios. O resultado disso é a convivência de uma realidade paralela, de completa incerteza, em açougues e feiras.

A situação da carne que sai do campo para a mesa do brasileiro preocupa não só consumidores, mas os próprios pecuaristas. Sob pressão dos mercados doméstico e internacional, empresários rurais cobram mais empenho dos serviços públicos de vigilância e alertam para danos à imagem do setor. ¿A persistência do comércio ilegal de carne vermelha não interessa a ninguém. Quanto maior a formalização e o controle sanitário, melhor para o desenvolvimento dos negócios¿, diz Geraldo Borges, presidente do sindicato dos Criadores de Bovinos do Distrito Federal (SCDF).

O Serviço de Inspeção Federal (SIF) atua junto a 3,82 mil estabelecimentos registrados no Departamento de Inspeção de Produtos de Origem Animal. Ele cobre 21 milhões de cabeças de bovinos oficialmente abatidos por ano, de um universo estimado em 40 milhões. Só em Mato Grosso, foram abatidos clandestinamente 2,5 milhões de bovinos em 2010, ante 4,33 milhões de abates legais, segundo o governo estadual, que determinou fiscalização extra na trilha da fazenda ao açougue.

Elson Cascão, um dos maiores criadores de gado de elite do Distrito Federal, acredita, contudo, que a elevação da renda da pecuária está favorecendo a regularização de toda a cadeia produtiva. O empresário aposta em uma gradual exclusão dos intermediários clandestinos ¿pela lei da oferta e da procura¿, impulsionada por clientes mais exigentes, pecuaristas capitalizados e grandes redes de frigoríficos. ¿O abate marginal já é escasso em regiões competitivas e o avanço do poder de consumo das classes C e D acabará por impor indicadores de qualidade ao varejo¿, lembra Cascão. ¿Na maioria das vezes, a aparência denuncia a carne sem inspeção¿, justifica. Os infratores podem receber duras punições, capazes até de obrigá-los a fechar as portas.

O DF é uma das raras exceções no país, com a carne bovina quase toda destinada a frigoríficos inspecionados regularmente. A geografia restrita e o perfil da produção ¿ 60% concentrada em rebanho leiteiro e o restante dominado pelo gado geneticamente selecionado ¿ permite aos produtores vender para poucas empresas, quase todas goianas. Com esse arranjo produtivo, o espaço para a pecuária de corte fica contido e o abastecimento local precisa ser complementado por carnes vindas de fora, sobretudo, Goiás e Minas Gerais ¿ sob o crivo federal. A vigilância da mercadoria abatida e vendida em cidades do DF é de competência da Secretaria de Estado de Agricultura (Seapa), por meio da Diretoria de Inspeção de Produtos de Origem Vegetal e Animal.

O cenário aparentemente confortável não tranquiliza os criadores, que exigem mais eficácia no controle de abates clandestinos em todas as esferas de governo e ainda reclamam dos serviços de saúde animal ¿ que tratam do gado vivo e ainda na propriedade. ¿O combate e o monitoramento de alguns importantes parasitas são exclusivos de fazendeiros, com diagnóstico feito por laboratório privado e sem qualquer subsídio¿, adverte Geraldo Borges, presidente do SCDF. A pesada concorrência no mercado internacional de carnes, liderado pelo Brasil, completa o representante dos produtores, é outro gargalo porque deixa os pecuaristas nacionais ainda mais expostos a episódios negativos. ¿Uma simples suspeita leva mercados inteiros a se fecharem, com prejuízos para exportadores de diferentes estados¿, reforça Borges.

O Ministério da Agricultura reconhece que o tema é sensível e promete apresentar neste semestre proposta de reformulação do marco regulatório da vigilância sanitária. Enquanto isso, será empreendido um esforço para simplificar regras, agilizar processos e investir em informática e gestão. Mas a principal resposta do governo federal para mitigar a escassez de inspeção está resumida na sigla Suasa, de Sistema Único de Atenção à Sanidade Agropecuária. Impedido de intervir nos serviços de vigilância que considera falhos, o Mapa tenta convencer órgãos parceiros a integrarem o projeto e a aderirem aos procedimentos que garantem reconhecimento mundial da vigilância federal. A migração abriria, automaticamente, vendas de produtores locais em todo território brasileiro e em 150 mercados no mundo.

Qualidade Luís Carlos de Oliveira, diretor do Departamento de Inspeção de Produtos de Origem Animal (Dipoa), do Mapa, explica que o objetivo é difundir o status de qualidade da carne validado pelo ministério e garantido pelo conhecido selo SIF. ¿Com a adesão voluntária de estados e municípios, iríamos superar o limite de 50% de carne livre de riscos¿, resume. Estão em estudo estímulos institucionais às entidades estaduais para viabilizar o sistema. O conceito desse modelo vem sendo debatido desde a década passada.

A lei de 2006 que institui o sistema unificado prevê padronização dos selos de inspeção municipal (SIM) e estadual (SIE) e a substituição do Sistema Brasileiro de Inspeção de Produtos de Origem Animal (Sisbi) pelo Suasu. O carimbo SIF estampado nas carnes in natura ou derivados em suas embalagens assegura que o estabelecimento que produz o alimento atende a todos os requisitos sanitários e boas práticas de fabricação. Oliveira lembra, no entanto, que as empresas são responsáveis pelo autocontrole da carne oferecida ao consumidor, cabendo ao setor público fiscalizar produtos e tirar empresas irregulares do mercado. ¿Com 900 inspetores, extrapolamos nossa capacidade de pessoal para atender. Assistimos ao crescente descompasso entre o tamanho da máquina fiscalizadora e o número de frigoríficos no país e de embarques ao exterior, que duplicaram em 10 anos¿, observa o diretor do Dipoa.

Seriam necessários mais 1,6 mil inspetores com a qualificação dos vinculados ao Mapa. Para piorar o quadro de carência, o Palácio do Planalto previu um corte de R$ 1,47 bilhão no orçamento deste ano do Ministério da Agricultura como parte do ajuste fiscal de R$ 50 bilhões anunciado há duas semanas pela área econômica como forma de conter a inflação de 2011 e ajustar os gastos públicos à realidade.