Título: Salto alto na Ásia
Autor: Machado, Antonio
Fonte: Correio Braziliense, 06/03/2011, Economia, p. 12

Eixo Índia-Brasil-África contraria a China à véspera da viagem de Dilma a Pequim e da cúpula do Brics

A viagem da presidente Dilma Rousseff a Pequim, entre 12 e 15 de abril, cumprindo um roteiro que começa com uma visita oficial a convite do anfitrião Hu Jintao e termina com a 2ª cúpula do Brics, com a África do Sul e a letra ¿S¿ de South African incorporadas ao acrônimo que reúne Brasil, Rússia, Índia e China, será muito mais complexa do que antecipa a carregada agenda do comércio bilateral.

Abstração imaginada por um economista do Banco Goldman Sachs para destacar o novo mundo dos emergentes candidatos a desbancarem EUA, Japão e União Europeia como potências econômicas em duas décadas, a ideia de um bloco autônomo das desgastadas economias avançadas foi levada ao pé da letra pelos líderes do acrônimo original, e há um ano eles perseguem as semelhanças que os unam. Está difícil.

Com modelos econômicos, regimes políticos e visões de mundo que mais os separam do que aproximam, não surpreende que, em vez de um denominador comum, essa sopa de letras chegue à sua segunda cúpula já fracionada, tornando o Brics um desiderato mais artificial que o Grupo dos 20 ¿ a cúpula entre os países ricos e os emergentes.

A discórdia está noutro acrônimo, o IBSA, um bloco entre Índia, Brasil e África do Sul, que deixou a China de fora. A Rússia não conta. Faz parte do Bric porque Jim O¿Neill, o autor da pensata, a incluiu sem imaginar que sua ideia pudesse ter desdobramentos.

Já a China é um caso à parte. Além de segunda maior economia do mundo, superando o Japão no ano passado, tem pretensão hegemônica na Ásia e rivalidades históricas com a Índia, um vizinho com quem disputa a influência regional e já trocou tiros na fronteira.

Não é simples a relação. Ambos têm cultura milenar, população na casa do bilhão, alta densidade demográfica, pobreza extrema, água escassa, vizinhos hostis, possuem arsenal nuclear e, apesar disso tudo, exibem as maiores taxas de crescimento econômico no mundo.

A rivalidade chegou à África, onde a China leva vantagem devido às suas enormes reservas para investir, US$ 2,85 trilhões, enquanto a Índia conta com uma grande e influente diáspora na África do Sul.

É briga de cachorro grande. A diplomacia do governo Lula deveria ter refletido melhor antes de enfiar o país no meio desse rolo.

Safári da diplomacia A inclusão da África do Sul ao Brics foi uma espécie de concessão à China. Quando o presidente Barack Obama esteve em novembro na Índia, segundo a revista japonesa The Diplomat, foi firmado acordo com o primeiro-ministro Manmohan Singh para estreitar as ações de cada um na África. O governo indiano manifestou que a África seria um de seus três ¿grandes objetivos de política externa¿ em 2011.

¿O IBSA tem personalidade própria¿, disse Singh, descartando dar atenção à contrariedade chinesa, segundo The Diplomat. ¿São três continentes distintos, três democracias. Bric é um conceito criado pelo Goldman Sachs. Estamos tentando colocar vida nele.¿

Promessa não cumprida As diferenças entre China e Índia exigem do governo brasileiro um jogo de cintura semelhante ao do amigo de um casal divorciado. Não dá para ter preferência, ainda que a China seja o maior importador de produtos brasileiros e, em 2010, também o maior investidor. Mas a Índia vem despontando, estando hoje como a China 10 anos atrás.

Talvez seja arriscado politizar a agenda bilateral, como se fez à época do chanceler Celso Amorim, quando houve a promessa, até hoje não formalizada, de reconhecer a China como ¿economia de mercado¿, uma prenda para o estabelecimento de ¿relações estratégicas¿.

Um parceiro exigente O embaixador chinês em Brasília adiantou que Dilma será indagada sobre o compromisso do então presidente Lula. Industriais ligados à Fiesp discordam, temendo que, ao tratá-la como o que não é, uma economia de mercado, mas planificada, com maquilagem liberal, as acusações e processos antidumping ¿ que não são poucos ¿ sejam dificultados. Esse é um dos contenciosos mais críticos da relação.

A China pode ser tanto solução como problema. Solução é o que se vê na trajetória comercial. Em 1989, segundo análise do diretor da EPGE/FGV, Rubens Penha Cysne, a China representava menos de 2% da pauta de exportações brasileiras e 1% das importações. Ao fim de 2010, tais relações passaram para 15% e 14%. Eles compram grãos e minérios, garantindo o superavit da balança comercial, e exportam bens industriais, deslocando, aqui e alhures, produção nacional.

Dilma gostaria de equilibrar melhor tais assimetrias comerciais. A questão é o que a China vai querer pedir em troca.

Sem dormir no ponto A presidente vai chegar a Pequim com o governo chinês em processo de mudança de dirigentes, marcada para 2012, e do modelo econômico movido a exportação e investimento, gradativamente, para o consumo interno. Ao mesmo tempo, a China procura diversificar as reservas externas, para reduzir a dependência dos papéis de dívida dos EUA.

Uma estatal chinesa comprou uma distribuidora de energia aqui, e outra, uma fatia relevante em blocos do pré-sal. A Petrobras teve também um adiantamento por petróleo. Tais aportes fizeram da China o maior investidor no país em 2010. Os interesses estão alinhados com os brasileiros. Se não ameaçarem a soberania sobre os recursos estratégicos, o Brasil, aí sim, terá motivos para cogitar relações especiais com a China. Mas sem nunca dormir no ponto.