Título: A segunda onda
Autor: Silva , José Graziano
Fonte: Valor Econômico, 27/08/2008, Opinião, p. A12

A atual alta dos preços dos alimentos já foi comparada a um tsunami silencioso. A subida acentuada que começou por volta de 2006-07 parece ter pegado o mundo de surpresa, embora já em 1996 e em 2002 a FAO tivesse convocado cúpulas mundiais sobre a fome no mundo. O problema já estava colocado, ainda que não tenha recebido a atenção devida.

À primeira vista, a situação está melhor hoje que nos primeiros meses de 2008, quando os preços das commodities continuavam sua escalada vertiginosa puxados pelo petróleo e pela desvalorização do dólar. Recente análise conjunta da FAO e da OCDE indica que os preços dos alimentos estão se estabilizando, ainda que em patamares muito mais elevados do que aqueles com os quais estávamos acostumados. O pior parece já ter passado, mas tudo indica que os preços dos alimentos se manterão altos por algum tempo, dependendo do que acontecer com o crescimento da economia mundial.

Por isso é preciso prestar atenção à segunda onda. Ela pode ser tão perigosa quanto o tsunami original que, segundo estimativa da FAO, aumentou em 50 milhões o número de famintos em 2007, corroendo quase todo o avanço dos últimos anos. E a alta dos preços traz efeitos colaterais que já começaram a ser sentidos. Primeiro, o forte impacto na inflação, que afeta mais os mais pobres. Levantamento do Escritório Regional da FAO em 17 países da América Latina e Caribe mostra que a inflação dos alimentos entre junho de 2007 e junho de 2008 foi mais que 50% superior à inflação geral. Em países como Brasil, Chile e Equador a inflação foi mais que o dobro.

Para combater a alta, alguns BCs estão aumentando os juros, como no Brasil e no Chile. Juros mais altos significam um crescimento econômico menor e se traduzem em menos oportunidades de trabalho. Isso é especialmente preocupante na América Latina e Caribe porque o problema da fome na região está relacionado com o acesso e não com a disponibilidade de comida. A região já produz alimentos suficientes para alimentar toda sua população e ser um dos principais exportadores do mundo. A questão é que nem todos têm dinheiro suficiente para comprar a comida necessária. Como dizia Josué de Castro, cujo centenário comemoramos este ano, a fome é a expressão biológica de um mal sociológico.

Subir os juros num país é um remédio tradicional, mas pouco eficaz para combater o aumento dos preços das commodities e que pode piorar o bem-estar dos mais pobres. Por isso, se medidas que restringem o crescimento econômico são necessárias, elas deveriam ser acompanhadas de maior proteção social aos mais pobres, como o reforço dos programas de transferência condicionadas de renda que já existem em mais da metade dos países da América Latina.

Vários países reagiram rápido à alta dos preços anunciando, entre outras medidas, um bônus emergencial para os mais pobres. Essa ajuda emergencial, às vezes ampliando programas já estabelecidos, tem de fato contribuído para mitigar os efeitos da alta dos preços dos alimentos no curto prazo. No entanto, os preços subiram por muitos meses e uma única ajuda, ou apenas um reajuste inicial, não é suficiente para garantir a alimentação das famílias mais pobres. Nas atuais circunstâncias, é importante que as transferências continuem, pelo menos enquanto durar a crise, sendo reajustadas para dar conta da alta de preços.

-------------------------------------------------------------------------------- A combinação de preços declinantes ou estáveis e os altos custos dos insumos podem gerar prejuízos na colheita --------------------------------------------------------------------------------

Além disso, embora os preços dos alimentos tenham parado de subir, eles ainda não começaram a cair significativamente para os consumidores finais. Há vários motivos para isso. Um deles é que os agentes econômicos estão prevendo o fim próximo de medidas temporárias que muitos governos adotaram para conter a alta dos alimentos. Em alguns casos, como no Haiti, o governo já anunciou que não tem mais recursos para continuar subsidiando o arroz vendido no país. O resultado é que o custo da comida mantém-se alto e a trégua anunciada pela estabilização dos preços pode não chegar tão cedo.

Essa segunda onda tem outras conseqüências. Frente à comida mais cara, a tendência é que as pessoas busquem alternativas mais baratas para se alimentar. Isso geralmente leva à substituição de leite e seus derivados, frutas e verduras por produtos de pior qualidade e com mais açúcar e farinhas. O efeito é o aumento da obesidade, que afeta especialmente crianças e mulheres. Por isso, é o momento de fortalecer os programas de educação nutricional para orientar os consumidores no processo de substituição de produtos, valorizando alimentos locais e da estação, que geralmente são mais baratos.

No médio prazo, outro problema já se torna evidente. Não podemos nos esquecer que não foram só os preços dos alimentos que subiram, mas também os custos de produção. Os preços de alguns fertilizantes feitos a partir de gás natural e petróleo subiram proporcionalmente mais que os dos alimentos.

Assim, os produtores comprando insumos agrícolas hoje o fazem a um custo maior que antes e com uma expectativa de preços de venda que, provavelmente, não se realizará na próxima safra, já que os preços pararam de subir e, em alguns casos, começaram a cair. É importante lembrar também que os preços mais altos que pagamos pela comida no supermercado freqüentemente não chegam até o produtor. Ou seja, o fato que os preços subiram não significa necessariamente um lucro maior aos produtores. Isso afeta, principalmente, aos agricultores familiares, cuja renda depende mais, ou exclusivamente, da própria produção.

A combinação de preços declinantes ou estáveis e os altos custos dos insumos podem desincentivar o plantio desta safra ou resultar em lucros menores e até prejuízos na próxima colheita. Ambas possibilidades preocupam. As oportunidades que surgiram para a agricultura familiar podem se tornar uma ameaça se medidas não forem tomadas para garantir mercados e preços justos aos seus produtos. Isso é possível e pode ser feito, por exemplo, através da compra governamental de produtos da agricultura familiar para abastecimento de programas sociais como a merenda escolar. O Brasil já faz isso, mas pode reforçar essas ações que também têm espaço em outros países.

A segurança alimentar, portanto, ainda inspira cuidados e atenção do setor público. Depois do tsunami, é preciso monitorar com muito cuidado, reagir e se antecipar às ondas que seguem.

José Graziano da Silva é representante regional da FAO para América Latina e Caribe.