Título: Armínio defende maior controle sobre oferta de crédito
Autor: Safatle , Claudia
Fonte: Valor Econômico, 27/08/2008, Especial, p. A14

Arminio Fraga, sócio da Gávea Investimentos e ex-presidente do BC: crescimento baixo pode durar mais tempo Preocupado com a expansão da oferta de crédito no país e com a onda de endividamento do consumidor, Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central e sócio da Gávea Investimentos, recomenda um endurecimento nas regras prudenciais para limitar a capacidade dos bancos emprestarem. "As regras da Basiléia são frouxas no que diz respeito aos riscos de liquidez e aos riscos de captação", disse Armínio.

Ele sugere que o Brasil se antecipe aos movimentos de regulação que acredita que virão de fora, na esteira de uma nova arquitetura financeira mundial que se seguirá à crise deflagrada pelas "subprime" americanas. "As tesourarias dos bancos já estão precificando esse risco, mas cabe ao Banco Central ficar de olho e tenho certeza que isso está no radar do BC", indicou. Armínio não acha razoável um financiamento de dez anos para a compra de um automóvel e ressaltou que é preciso averiguar se a expansão do crédito de mais longo prazo está sendo acompanhada por um alongamento no prazo de captação dos bancos.

Na avaliação de Armínio, o crescimento econômico do país foi, até agora, movido sobretudo pelo aumento do consumo e do crédito. "O consumo nunca foi âncora para o crescimento sustentável", salientou. O foco nas questões que devem ser responsáveis pelos processos de crescimento mais acelerado e sustentável tem sido insuficiente. "Aí eu me refiro à qualidade da educação, ao desenvolvimento da infra-estrutura, ao aumento da taxa de investimento. Isso é o que faz o país crescer de maneira sustentável." A taxa de investimento tem aumentado, "mas os outros itens que mencionei não estão respondendo à altura", avalia.

Valor: A crise externa, que parecia se acomodar no primeiro semestre, recrudesce. Em que pé estamos?

Armínio Fraga: No segundo semestre do ano passado houve a fase inicial, em que se subestimou muito o tamanho do problema. Depois veio segunda fase, de reestimativa do tamanho do problema, chegando a níveis enormes e, particularmente nos EUA, houve a seqüência de reduções dos juros até os 2% que vigoram hoje. Isso tudo assusta muito.

Valor: Por quê?

Armínio: A minha primeira leitura é que foram duas grandes surpresas: 1) a extensão da crise de crédito; 2) uma certa resistência das economias que se desaceleraram naturalmente, mas não se viu ainda uma megarrecessão. Impressionou muito, especialmente no caso americano, o fato do tamanho do buraco financeiro ser realmente o maior em várias décadas e a economia crescer no segundo trimestre, 2% a 3% anualizados, impulsionada um pouco pelo pacote fiscal.

Valor: E o que vem a seguir?

Armínio: O que parece que está acontecendo agora de forma mais generalizada, não só nos EUA mas também na Europa, no Japão e quem sabe até na China, é uma desaceleração movida por esse clima de incerteza e de escassez de crédito. Agora sim, o medo é que isso possa gerar uma segunda rodada de problemas, em que o feedback é com a economia real. Há muita gente achando que as principais economias do mundo podem passar mais 18 meses crescendo abaixo do seu potencial.

Valor: Mas ainda se fala de crescimento, não?

Armínio: O Japão já está aparentemente entrando numa recessão, definida como queda do produto, a Europa já teve um trimestre negativo e a expectativa é que os EUA também tenham. Os cenários mais negativos não podem ser descartados. Hoje há questões muito delicadas e entrelaçadas.

Valor: Quais?

Armínio: As gigantes do setor financeiro imobiliário nos EUA - a Fannie May e a Freddie Mac - têm um balanço conjunto de cerca de US$ 5 trilhões e suas ações caíram cerca de 90% na bolsa. Estão numa fase de enorme volatilidade, mas com uma base de capital muito pequena frente a tanto ativo. Estamos falando de US$ 10 bilhões de capital para US$ 5 trilhões de ativos. São situações complicadas. Existe uma garantia implícita do governo americano; há um volume enorme nas mãos de investidores estrangeiros, tipicamente bancos centrais e fundos soberanos. Esse é o quadro lá fora. Um quadro ainda de digestão do que foi uma grande euforia, em que especialmente o consumidor americano se alavancou muito e a economia americana, também. Mas o consumo nunca foi âncora para o crescimento sustentável.

Valor: Esse quadro, de baixo crescimento ou recessão, dura até 2010?

Armínio: Até algum momento do ano que vem, se as coisas forem bem. Os bancos centrais, especialmente o americano, têm respondido com firmeza. A expectativa é evitar os piores cenários de uma desestabilização maior, de uma corrida contra o dólar ou coisa do gênero.

Valor: Continua havendo empoçamento de liquidez no sistema interbancário?

Armínio: Sim. Uma boa medida é o custo dos CDBs da Libor e a taxa de juros das T-bills (letras do Tesouro americano). O "swap spread" com prazo de dois anos, até meados do ano passado, oscilava em torno de 40 pontos base. Em agosto de 2007 foi para cerca de 75 e hoje está em 102 pontos (1,02%). O custo de captação dos bancos subiu 60 pontos, na média. Quando você pensa que um banco alavanca de 15 a 30 vezes, o impacto sobre a rentabilidade do setor é enorme, sobre o apetite de tomar risco, de emprestar, e isso continua não só nos EUA, mas na Europa também. É um quadro muito preocupante. Não dá para dizer que isso já passou, muito pelo contrário. Quando surgem movimentos mais correlacionados de desaceleração econômica, a esperança de que vai haver descolamento diminui e acho que é preciso se preparar para uma fase mais difícil.

Valor: Em que medida?

Armínio: Menos crescimento e mais risco. Para o Brasil, durante a primeira fase e até seis meses atrás, a crise financeira, que não nos afetou muito em função de uma certa robustez das contas externas e macroeconômica em geral, foi compensada pelo aumento dos preços das commodities. De lá para cá várias commodities caíram de preço, o petróleo chegou a um pico e os produtos agrícolas também já não estão mais no seu ponto mais alto, alguns dos metais também não.

Valor: Esse é um movimento mais definitivo ou faz parte da volatilidade?

Armínio: Essa é, por enquanto, uma discussão mais de conjuntura. Para o Brasil, se houver uma desaceleração dos nossos principais parceiros comerciais e alguma queda nos preços das commodities, podemos sentir um pouco mais. Além disso, a inflação subiu bastante, o que exigiu uma resposta que veio não só do Banco Central, mas também do aumento do superávit primário, e tudo leva a crer que vai haver uma queda no ritmo de crescimento. A inflação vinha beirando o topo da banda, mas com a resposta pronta do BC as expectativas já estão se revertendo um pouco. As quedas nas commodities também têm ajudado na margem, mas de qualquer jeito é razoável esperar uma redução no nível de atividade.

Valor: Que continua crescendo.

Armínio: Não se espera nada muito preocupante. Mas não é razoável, nesse ambiente global e com a inflação significativamente acima da meta, contar com crescimento de 5,5%. Estamos num outro momento do ciclo, no que diz respeito às principais economias, o que é positivo, mas requer uma atenção como a que o BC tem dado. Não dá para deixar correr e daqui a pouco termos que lidar com a indexação e outros problemas históricos nossos. A resposta foi correta e dada na hora certa.

Valor: Há uma avaliação, no governo, de que os juros já aumentaram bastante, a inflação começou a cair e não serão necessárias novas elevações. O sr. concorda?

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Armínio: O ruído é perceptível, mas também parece ser muito claro que, apesar das evidentes diferenças de opinião, o presidente não está disposto a arriscar um trabalho que ele vem desenvolvendo desde o início. Ele é a grande âncora da política monetária, o que é bastante reconfortante, já que, se for para escolher uma âncora só, que seja a mais forte. O ruído não ajuda, mas não acredito numa guinada populista no campo da inflação.

Valor: E no gasto público?

Armínio: Nesse campo, a tentação é maior e as conseqüências não se fazem sentir a curto prazo. Estamos falando de menos investimento, menos espaço para criar as condições para um crescimento genuíno. Não acredito que o consumo por si só resolva a questão do investimento. É claro que é preciso que haja demanda, mas um movimento de crescimento alicerçado principalmente no crédito e no consumo não vai muito longe. Conhecemos essa história. A tentação de gastar todas as receitas e até puxar mais receitas para gastar é muito grande e o custo vem depois, num país que tem uma carência colossal de investimento que não está sendo suprida.

Valor: A crise externa pode ser mais intensa do que está sendo?

Armínio: Estou sendo cauteloso porque há uma incerteza enorme. O que não dá para dizer é que a crise já está em vias de terminar. Se vai piorar muito ou se vai se prolongar no ritmo atual, vamos ter que acompanhar de perto para ver.

Valor: Mas ainda há coisas por acontecer?

Armínio: Por mais de um século o preço dos imóveis nos EUA oscilou dentro de uma faixa relativamente estreita, em termos reais. De repente, há seis ou sete anos, subiram entre 40% a 60%, dependendo da medida que se usa. Desse pico já caiu uns 20%. As estimativas dos especialistas indicam que, se cair mais 20%, o número de famílias que não vão conseguir administrar as suas hipotecas vai aumentar muito. Vão estar com uma dívida maior do que o valor do imóvel e, dadas as regras americanas de financiamento, podem ter que entregar as chaves. Isso cria uma oferta maior no mercado, reforçando mais a queda de preços. É difícil argumentar que essas coisas vão se estabilizar rapidamente e que a economia vai retomar um padrão de crescimento mais rápido. Isso é pouco provável. Não dá para dizer, também, que vai mergulhar numa megarrecessão.

Valor: Fala-se em até US$ 1 trilhão de perdas no sistema financeiro americano e europeu. Isso não traz o risco de uma crise bancária?

Armínio: Justamente, esse é o risco. E hoje já se fala em mais de US$ 1 trilhão. O próprio FMI, no relatório de estabilidade financeira, publicou uma tabela dizendo que pode chegar a quase US$ 1 trilhão. Eu me arriscaria a dizer que, se eles fossem revisar esse número hoje, seria para cima. Talvez, não os US$ 2 trilhões do Roubini (Nouriel, economista), mas algo aí no meio. É disso que estamos falando e é esse o problema. Por mais que os bancos tenham conseguido atrair algum capital, não atraíram nem de perto o suficiente para compensar uma perda de US$ 1,5 trilhão.

Valor: Como será o mundo depois dessa perda?

Armínio: Com o tempo ela será digerida e o sistema vai se regenerar. Acredito que vai também passar por uma série de reformas de natureza prudencial. Esse grau de alavancagem que se viu nesse período recente, especialmente dos bancos de investimento, vai demorar a voltar, se é que vai voltar. As margens vão diminuir também. O setor financeiro, que respondia por cerca de 40% do lucro corporativo nos EUA, com certeza vai ver esse percentual cair bastante. E, falando francamente, 40% do lucro para um setor, qualquer que seja, não me parece razoável. Não foi uma exuberância natural, mas alavancada em cima de balanços que não eram sustentáveis. Isso tudo vai mudar, mas como é que as coisas vão ficar, ninguém sabe ainda, até porque nos EUA, em particular, sendo um ano de eleição e de crise financeira, não se vêem grandes progressos em direção a uma nova arquitetura financeira que, a meu ver, é necessária.

Valor: O Brasil está preparado para esse momento mais difícil?

Armínio: Há sinais de que a resposta que o governo deu na política monetária foi extremamente bem-sucedida. As expectativas de inflação para este ano já estão caminhando para baixo. Outro fato muito interessante e pouco discutido é que as taxas de juros mais longas, as de três anos e pouco no mercado futuro, caíram de quase 15,5% para 14%. Este é um sinal muito bom de convergência de expectativas e de credibilidade, que nem sempre é levado em conta pelos que criticam o aumento dos juros no overnight, que é os juros de um dia que não impactam tanto o cidadão que vai tomar um financiamento. Curiosamente, o que o BC fez foi agir mais sobre as expectativas de inflação do que propriamente sobre o juro real de prazo mais dilatado. Passei por lá e ninguém gosta de ficar aumentando juros. Todo BC, se pudesse, deixaria o juro cair, desde que a inflação não subisse.

Valor: E o crescimento de 2009?

Armínio: É possível que o crescimento caia para 4% ou menos.

Valor: Então, está tudo uma maravilha?

Armínio: Longe de mim dizer que a situação no país não é boa, mas acho que não podemos nos iludir. Estamos saindo de um período extraordinariamente favorável da economia mundial. Nosso crescimento foi extremamente bem-vindo e agradável, mas não podemos nos contentar com isso. Foi um crescimento muito movido ainda por consumo. Essa onda de endividamento do consumidor no Brasil começa a ser preocupante e há pouco foco nas questões que devem ser responsáveis pelo crescimento mais acelerado e sustentável. Eu me refiro à qualidade da educação, ao desenvolvimento da infra-estrutura, ao aumento da taxa de investimento.

Valor: O investimento não está crescendo?

Armínio: Vimos algum aumento na taxa de investimento, mas os outros itens que mencionei não estão respondendo à altura. Não adianta ter o lado da demanda. Tem que ter o lado da oferta, também. Há uma enorme carência de investimento na infra-estrutura do país. Não creio que isso tenha sido o ponto alto do governo atual, que tem feito muita coisa boa, longe de mim negar isso. Mas, nesse quesito, os resultados não foram bons. A infra-estrutura é extremamente carente, não tem recebido sequer os investimentos necessários para manutenção, o que dirá para expansão. Isso é gravíssimo em várias frentes. Estamos falando de energia, estradas, portos, aeroportos, ferrovias, água, saneamento etc.

Valor: O sr. recomendaria regras mais prudenciais para os bancos no Brasil, para enxugar um pouco a oferta de crédito?

Armínio: Sim. Há financiamento de automóvel com prazo muito longo e ênfase exagerada no crédito consignado. As pessoas se esquecem que estão tomando financiamento e depois têm que pagar. Com os juros que temos, a conta vem salgada depois. Você já começa a ouvir histórias de gente que mergulhou até de forma irresponsável ou inocente no crédito consignado. A taxa de inadimplência do crédito ao consumidor já passou de 7%, pelas estatísticas do BC. Cabe, sim, uma certa prudência nesse momento. Não acho razoável financiamento de automóvel de dez anos. Se essa expansão do crédito de prazo mais longo não está sendo acompanhada por um alongamento no prazo de captação dos bancos, isso é uma questão prudencial que precisa ser levada em conta.

Valor: Mas não há as regras da Basiléia?

Armínio: Essas regras precisam ser vistas não só no Brasil. Acho que é um problema generalizado. As regras da Basiléia são frouxas no que diz respeito aos riscos de liquidez e aos de captação. O Brasil pode se antecipar ao que vem aí de fora. As tesourarias dos bancos já estão precificando esse risco, mas cabe ao BC ficar de olho e tenho certeza de que isso está no radar.

Valor: O mundo que virá depois dessa crise será um mundo que cresce menos?

Armínio: Sim. O mundo nos últimos cinco anos cresceu um pouco rápido demais e a prova disso é que a inflação subiu de forma generalizada. Isso não foi um choque de oferta de uma ou outra commodity. Foi um processo mais geral. Cresce menos, mas cresce bem. Andou crescendo a 5% e acho que agora vai crescer 4% a 4,5%.