Título: Recuo à tradição
Autor: Fleck, Isabel
Fonte: Correio Braziliense, 06/03/2011, Mundo, p. 18

REVOLTA NO ORIENTE MÉDIO No governo Dilma Rousseff, o Itamaraty adota um tom mais incisivo em relação aos direitos humanos e se destaca pela cautela política. Especialistas em política externa veem mudança positiva e a consideram fiel ao passado diplomático

Quanto tempo é necessário para que as diferenças entre um novo governo e seu antecessor se manifestem? No caso da diplomacia de Dilma Rousseff, um mês recheado de intensa ebulição política no Oriente Médio foi suficiente. A resposta do Brasil aos recentes eventos na Tunísia, Egito e Líbia marcou uma mudança, especialmente no estilo, que agradou a quem acompanha a política externa brasileira. Nos dois primeiros casos, foram poucos os pronunciamentos ¿ da presidente e do próprio chanceler, Antonio Patriota ¿ sobre os temas inicialmente considerados ¿questões internas¿ de cada país. Já em relação à Líbia, a diferença foi no tom de condenação à violação dos direitos humanos dos manifestantes que pedem a saída do ditador Muamar Kadafi. A postura culminou em um raro apoio do Brasil à suspensão de um país no Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas.

O próprio Itamaraty, em nota divulgada na última sexta-feira, reconheceu que essa foi uma decisão ¿sem precedentes¿. Cinco dias antes, a ministra Maria do Rosário, secretária de Direitos Humanos da Presidência, assegurou, em Genebra, que o Brasil defende a discussão das violações de direitos humanos em todos os países, ¿onde quer que elas ocorram¿. ¿Nenhum governo se sustentará pela força ou pela violência. Nenhum povo suportará em silêncio a violação de seus direitos fundamentais¿, declarou a representante brasileira. Ela, contudo, defendeu um debate ¿sem politização¿, já que, ¿por anos a fio, alianças estratégicas alimentaram o silêncio acerca de violações dos direitos humanos.¿

Para muitos, a interpretação se encaixaria no governo de Luiz Inácio Lula da Silva, que foi questionado pela omissão em condenar publicamente o apedrejamento da iraniana Sakineh Ashtiani e a morte do preso político cubano Orlando Zapata Tamayo, após uma greve de fome. Tudo pela proximidade entre o presidente brasileiro e os líderes dos dois países.

O respaldo do Itamaraty à declaração de Maria do Rosário mostra que o tom mais rígido em relação aos direitos humanos não é um discurso isolado dentro do governo. Em visita a Pequim, o chanceler Antonio Patriota reafirmou o compromisso dos países da América do Sul e dos países árabes com o ¿direito internacional e a observância dos direitos humanos e do direito internacional humanitário¿. ¿O Brasil nunca apoiou esse tipo de ação, mesmo no âmbito da ONU¿, observou a professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Cristina Pecequilo, referindo-se ao voto do Brasil pela suspensão da Líbia no Conselho de Direitos Humanos. Ela, contudo, não sabe se a dura postura se repetirá em outros casos de ameaça aos direitos humanos ¿ como o de Sakineh. ¿Gostaria de ver uma tendência mais clara, porque, no caso da Líbia, o Brasil nem sequer poderia se omitir, por estar à frente da presidência do Conselho de Segurança¿, ponderou.

Retração Mas não foi só nessa questão que a postura brasileira mudou. Nos bastidores, houve pouco do famoso ¿protagonismo¿ da era Lula ¿ o que não significou alienação. Enquanto nas notas emitidas pelo Itamaraty o foco se manteve especialmente na preocupação com o respeito ao direito dos manifestantes, o ministro Patriota tomava pé da situação política conversando com líderes da região, como o secretário-geral da Liga Árabe, Amr Moussa, e o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon. O chanceler inclui a situação do norte da África na agenda que manteve com colegas de outros países do Conselho de Segurança, durante viagem a Nova York. Patriota tratou do assunto com as colegas francesa, Michele Alliot Marie, e norte-americana, Hillary Clinton. Mas a atuação ¿ tanto no período que antecedeu a queda de Hosni Mubarak no Egito, quanto agora, em que manifestantes pedem a saída do líder líbio, Muamar Kadafi ¿ não chegou ao Planalto, como era de praxe na gestão anterior.

¿Há uma diferença instrumental, mas ainda não de conteúdo. Natural no governo Lula é que houvesse um telefonema entre os presidentes, e o Brasil está quieto, o que é uma inclinação muito interessante¿, observa José Flávio Sombra Saraiva, professor de relações internacionais da Universidade de Brasília (UnB). O especialista considera o que viu até agora um ¿recuo à tradição diplomática brasileira¿, caracterizada por notas que destacam conceitos mais universalistas, como o respeito aos direitos civis dos manifestantes, e pela cautela política, que evita declarações desnecessárias.

Para Saraiva, a diferença se deve a uma conjunção dos perfis de Dilma e Patriota, que, apesar de serem ¿crias¿ do governo Lula, partilham da visão de que é possível ¿participar onde se pode estar¿. ¿Isso é altamente positivo, porque mostra que o Brasil sabe medir os seus meios para participar no cenário internacional¿, avalia. O vice-presidente do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), Marcos de Azambuja, secretário-geral do Itamaraty no governo Collor, concorda que o recuo é adequado. ¿É notável a diminuição do nível de ativismo, de protagonismo. E a impressão que passa é de um Brasil sóbrio, sem ser teatral e sem querer ter um papel que vai além do seu interesse¿, afirma Azambuja.