Título: Estrutural, crise está longe de terminar
Autor: Guimarães , Luiz Sérgio
Fonte: Valor Econômico, 01/09/2008, Finanças, p. 0

A crise financeira internacional é sistêmica e estrutural, e não tem prazo para terminar. O que está em jogo é a hegemonia do dólar como padrão financeiro global. E não há um sucessor à vista. A atual crise não deve ser entendida como um espasmo típico e corriqueiro que, de vez em quando, sacode o sistema capitalista. Trata-se de um evento de natureza nunca experimentada antes. O mundo desenvolvido terá de se reestruturar para lidar com suas consequências. E países como o Brasil, ainda a salvo das tempestades, devem torcer para não serem convocados a dar a sua cota de sacrifício.

Estas afirmações foram feitas, no seu costumeiro tom enfático, pela professora de economia da UFRJ e da Unicamp, Maria da Conceição Tavares. Auto-exilada do debate econômico e dos artigos à imprensa, a professora só consentiu em voltar a expor suas idéias a um auditório por tratar-se de um evento especial: o primeiro seminário de um ciclo destinado a comemorar os 40 anos do Instituto de Economia da Unicamp. Em sua palestra vespertina, Conceição contestou a visão exposta de manhã pelo economista Luiz Carlos Mendonça de Barros, diretor da Quest Investimentos, segundo a qual a crise de crédito atual é apenas mais uma das ocorrências periódicas pelas quais passa o capitalismo. São irrupções inerentes à dinâmica do capitalismo.

Por causa disso, para Mendonça de Barros, não há muito o que fazer a não ser o que está sendo feito pelo Federal Reserve (Fed): a injeção de vastos oceanos de liquidez, enquanto ganha tempo para que o preço dos imóveis que serviram de lastro à securitizações se recupere, permitindo uma reestruturação das carteiras. As autoridades americanas podem igualmente aumentar os regulamentos, as interdições e punições às operações engendradas pelo mercado. Mas logo "mentes brilhantes" irão desenvolver novos produtos financeiros capazes de burlar as restrições implantadas. E, após um período de trégua, de cinco a dez anos, nova crise irá assolar os mercados.

A sorte é que, no entender de Mendonça de Barros, está surgindo um poder capaz de contrastar e contrabalançar a hegemonia americana. Com o advento da China, as crises peculiares ao capitalismo surgidas no centro financeiro podem ser menos devastadoras. Isso porque a China decidiu concentrar a sua produção para atendimento prioritário ao gigantesco mercado doméstico. É uma grande exportadora, mas só exporta o que sobra.

Conceição Tavares discorda. Trata-se hoje da primeira crise invisível do capitalismo. Como cerca de metade das intrincadas operações de securitização nunca foi registrada, há uma enorme "sombra" sobre o tamanho real do rombo. Nunca antes se lidou com uma "shadow finance" de dimensão apenas vislumbrada em territórios movediços como os pregões de derivativos e os instrumentos de balcão destinados a multiplicar os títulos lastreados em apenas um único bem real. A crise atual tem uma natureza etérea e enganosa que escapa aos reguladores e ao Federal Reserve. Como não há registros confiáveis, não pode agir como no passado. "O Fed está tratando a Fannie Mae como se esta fosse um banco de investimentos. Isso é ilegal. Pela lei, não pode. Mas eu cometeria a mesma ilegalidade", diz a professora.

Não se pode confundir a crise atual, eminentemente de ativos, com os ciclos de renda de uma economia monetária. Ou seja, tudo está bem em uma economia e de repente estoura uma crise financeira. O Fed tem de agir sobre esta sem esquecer do ciclo maior em que se insere a economia. A crise é de destruição de riqueza financeira nos EUA, na Europa e na Ásia. A professora refuta as profecias fáceis segundo as quais a crise irá provocar a substituição do dólar como moeda-padrão universal. Isso não está claro. Em primeiro lugar porque os americanos não vão deixar. Depois de todas as turbulências, o dólar ainda é a moeda de negociação de todas as commodities e do petróleo. As bolhas não foram provocadas porque há um desequilíbrio entre oferta e demanda. Na verdade, elas foram inchadas pela frenética volatilidade recente do dólar. Em segundo, porque o euro não se presta a ocupar o lugar do dólar. A velha Europa não consegue unir-se para de fato se transformar na segunda força econômica do mundo. De sua parte, o Japão sempre é escalado pelos EUA para acolher os estilhaços decorrentes dos ajustes feitos na economia interna americana. E o yuan não é ainda nem uma moeda conversível. Se o dólar acabar, provavelmente se assistirá ao nascimento de pequenas aglutinações de países negociando entre si por meio de uma moeda aceita livremente por eles, mas nada que lembre a cobertura universal do dólar.

No entender da professor da Unicamp, a China não fará o papel de potência num mundo bipolar. Enquanto o Japão tem a pretensão de competir globalmente com os EUA, a China está "dentro" da globalização, ou seja, abriga as empresas de ponta do mundo desnacionalizado. "Quem, no começo dos anos 90, arriscasse a previsão de que a China se tornaria a plataforma mais moderna inserida dentro do sistema capitalista correria o risco de ser ridicularizado, mas é isso o que aconteceu", diz Conceição.