Título: As armadilhas da intervenção na Líbia
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Fonte: Correio Braziliense, 08/03/2011, Opinião, p. 12

Um ditador inconsequente, que põe as Forças Armadas contra seu próprio povo, promove um massacre, desdenha da comunidade internacional, faz o preço do petróleo disparar e desencadeia uma corrida de multidões de refugiados em busca de segurança. Os ingredientes da crise na Líbia seriam mais que suficientes, em tempos passados, para provocar uma ação internacional conjunta pela remoção do coronel Muamar Kadafi. Mas, após décadas de desgaste da Organização das Nações Unidas, tornou-se mais prudente pensar duas vezes antes de arcar com as consequências de uma intervenção militar.

Desde a semana passada, vem ganhando vulto a tese de criação de uma zona de exclusão aérea na Líbia. A medida daria às aeronaves estrangeiras poder para abater os caças líbios, impedindo os bombardeios ordenados por Kadafi contra os civis e milicianos da oposição e abrindo caminho à chegada de ajuda humanitária. À primeira vista, uma resolução da ONU que estabelecesse tal zona seria bem-vinda, haja vista os mais de 2 mil mortos e 200 mil desalojados pelo conflito. A longo prazo, no entanto, uma interferência dessa magnitude, apoiada pelos Estados Unidos, Reino Unido e França, traria mais instabilidade política e poderia fortalecer o ditador.

A Líbia, terceira maior produtora de petróleo da África, está localizada em uma região estratégica para o comércio mundial. Sua população sabe que o território e as riquezas nele guardadas são objeto de cobiça no exterior. Para muitos líbios, o confronto atual é visto como um expurgo após 40 anos de regime autoritário, e o suporte direto de norte-americanos ou europeus à revolta comprometeria a idoneidade de um novo governo. O desastrado pós-guerra no Iraque ¿ do qual a ONU foi alijada, para, depois, assumir tarefas inglórias ¿ ainda não foi esquecido na região.

Os reiterados apelos para levar o ditador ao banco dos réus também mais atrapalham que ajudam neste momento ¿ reforçam o discurso de Kadafi sobre a existência de dois pesos e duas medidas na Justiça internacional. Afinal, por que o egípcio Hosni Mubarak e Zine El Abidine Ben Ali, da Tunísia, não sofreram a mesma pressão? Os três vinham de lua de mel com governos ocidentais e promoveram matanças para permanecer no poder. Enfim, a falta de critério e consistência nas posições que as grandes potências defendem perante a ONU inviabiliza uma atuação mais firme.

Por meio da Resolução 1970, de fevereiro, as Nações Unidas impuseram um embargo de armas à Líbia e congelaram bens de autoridades do país no exterior. Caso essas represálias sejam cumpridas à risca, com a punição de empresas que as desrespeitarem, a queda de Kadafi pode ser mais rápida e independer de um desgastante envolvimento militar estrangeiro. Cabe ao Conselho de Segurança acompanhar de perto a crise e não se deixar guiar por interesses político-econômicos escusos para definir, com isenção e prudência, sobre a necessidade da intervenção.