Título: Convivência impossível com invasão de privacidade
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 02/09/2008, Opinião, p. A10

Como bem sabe o ministro da Justiça, Tarso Genro, a história brasileira tem casos de conivência do governo com a transgressão aos princípios básicos da liberdade individual, a pretexto de proteger a sociedade de ameaças criminosas. No regime militar, essa conivência fez com que a tortura fosse conhecida e tolerada por altos escalões do governo, e serviu de teste para o projeto de abertura política gestado no governo de Ernesto Geisel.

Geisel fechou os olhos à tortura de oposicionistas, enquanto articulava o desmonte da linha-dura militar, contrária ao projeto de abertura gradual e segura concebido por seu chefe da casa Civil, Golbery do Couto e Silva. A morte do jornalista Vladimir Herzog, e, pouco depois, do operário Manoel Fiel Filho fez o presidente sentir que perdia terreno para o que chamava de "seus" radicais. Geisel demitiu um general, o chefe do II Exército, Ednardo D'Ávila Melo, a quem estavam subordinados os responsáveis pelos assassinatos, enviando a todos um sinal inequívoco.

Geisel, que já foi classificado como "estadista" pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sentiu que a tolerância minaria as condições de sobrevivência do próprio governo. Pouco antes dos episódios que o levaram a despedir um dos expoentes da linha-dura, havia tentado minimizar o alcance da distensão anunciada pelo governo, restringindo-a ao plano econômico, em um discurso de agosto de 1975 que chegou a ser chamado de "pá-de-cal".

Comparações são sempre delicadas, especialmente quando se tratam de períodos tão distintos na vida política do país. Mas podem ser didáticas. A generalização das escutas telefônicas e ambientais como instrumento das investigações policiais estendem o poder do Estado para além das irregularidades investigadas, e, usadas sem critério, violam princípios constitucionais. Ao tomar o lugar dos outros métodos de investigação e transformar-se em principal recurso no combate a irregularidades, a escuta, que deveria ser exceção, cristaliza-se como regra, faz com que pareça verossímil o relato de que agentes do Executivo andaram espionando autoridades de outros poderes.

No recente episódio de gravação clandestina de conversas do presidente do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, com um senador da oposição, a autoria do grampo foi atribuída pela imprensa à Agência Brasileira de Informações (Abin) . Não se conhecem provas de que seja a agência a responsável. Sabe-se que, na história recente, gravações ilegais têm sido usadas como arma em disputas comerciais e também já foram instrumento de vendetas políticas - há cinco anos, o atual ministro da Integração Nacional, Geddel Vieira Lima, foi vítima de grampos assumidos por Antônio Carlos Magalhães.

O presidente da Agência Brasileira de Informações, a Abin, Paulo Lacerda, de excelente reputação e que ontem foi afastado temporariamente do seu cargo, não tem o perfil do araponga ávido por manobras de espionagem à margem da lei. Mas ele e todo o Executivo são postos em delicada situação quando diálogos reservados dos mais altos magistrados da República parecem mais fáceis de capturar que os preguiçosos pombos da Praça dos Três Poderes.

No regime democrático, as ameaças à liberdade e aos direitos individuais aparecem de forma mais sutil, sem o capuz dos torturadores, mas também inaceitáveis. É preocupante quando, diante da violação das conversas alheias, o ministro da Justiça, Tarso Genro, reage com a sugestão de que os brasileiros se "acostumem com a escuta". Em entrevista, em julho, o ministro argumentou que a "sofisticação da parafernália eletrônica" chegara a tal ponto que qualquer pessoa estaria sujeita a ter conversas íntimas varadas pela bisbilhotice. "Estamos chegando num ponto em que temos de nos acostumar com o seguinte: falar no telefone com a presunção de que alguém está escutando", recomendou o ministro.

Quando a autoridade a quem está subordinada a Polícia Federal diz ao cidadão que se acostume com invasão de privacidade e busque maneiras de se adaptar a ela, os autores das escutas ilegais são condecorados com a permissão para agir, seja do governo ou de grupos privados, alegando os mais nobres motivos, ou os mais torpes.