Título: Kadafi contra-ataca
Autor: Craveiro, Rodrigo
Fonte: Correio Braziliense, 07/03/2011, Mundo, p. 12

Com helicópteros e tanques, forças do ditador bombardeiam o leste da Líbia e anunciam vitórias. Oposição nega e médico descreve massacre

¿Por favor, eu quero falar. Precisamos de ajuda. A comunidade internacional precisa ver com seus próprios olhos o que está acontecendo aqui¿, desabafou ao Correio, por telefone, Khalid Mustafa Abufalgha. Médico do Hospital Central de Misrata, cidade situada a 150km a leste de Trípoli, ele contesta a notícia de que as forças do ditador Muamar Kadafi obtiveram avanços na região. E relata um cenário de pesadelo. ¿É um massacre, um desastre. Durante a manhã, as forças de Kadafi tentaram entrar em Misrata e alcançar o centro. Os tanques dispararam contra as mesquitas e as casas¿, afirmou. Khalid conta que, após cinco horas de ¿pesados combates¿, pelo menos 20 pessoas morreram e mais de 100 ficaram feridas. ¿A maioria das vítimas eram civis que dirigiam seus carros e bebês que brincavam perto de suas casas¿, indigna-se. Nem mesmo a única farmácia da cidade foi poupada. A situação beira uma crise humanitária: o hospital começa a enfrentar a escassez de drogas para cirurgia e de respiradores artificiais. ¿Tivemos que operar duas pessoas hoje (ontem) e foi um desastre¿, diz Khalid. As agências de notícias divulgaram que os revolucionários capturaram 20 soldados e se apoderaram de um tanque, em Misrata.

As tropas de Kadafi atacaram ontem em várias frentes do leste da Líbia e garantem ter reconquistado cidades-chaves, inclusive Misrata, Ras Lanuf e Tobruk, todas entre Trípoli e a fronteira do Egito. ¿Não é verdade. Elas fugiram de Misrata por volta das 18h (13h em Brasília) e estão a mais de 25km do centro¿, garante Khalid. Um repórter da emissora britânica BBC sustenta que Tobruk e Ras Lanuf permanecem nas mãos dos opositores. De acordo com a agência France-Presse, a principal derrota sofrida ontem pelos rebeldes ocorreu em Bin Jawad, a 600km a leste de Trípoli.

Apoiados por helicópteros e aviões, os militares teriam invadido várias residências e disparado contra os insurgentes de dentro das casas. O site oposicionista 17 Feb ¿ The Libian Youth Movement acusa mercenários de usarem mulheres e crianças como escudos humanos. Durante a ofensiva, ao menos duas pessoas foram mortas e 30 se feriram, inclusive um jornalista francês. Os rebeldes viram-se obrigados a abandonar a cidade. Em Ras Lanuf, a 50km a noroeste de Bin Jawad, helicópteros dotados de metralhadoras mataram duas pessoas. Na noite de ontem, as forças contrárias a Kadafi se reorganizavam para avançar sobre Sirte, terra natal do ditador, depois que foram repelidas pela manhã.

Acesso à ONU Preocupada com a intensificação dos combates e dos bombardeios, a Organização das Nações Unidas (ONU) pediu ontem ¿acesso urgente¿ a Misrata. ¿As entidades humanitárias precisam de um acesso urgente¿, declarou Valerie Amos, secretária adjunta da ONU para Assuntos Humanitários. ¿As pessoas estão feridas e morrendo e precisam de ajuda imediata. Convoco as autoridades a permitir o acesso (às vítimas), para que os trabalhadores humanitários possam salvar vidas¿, ressaltou.

Em uma manobra classificada pelos rebeldes de manipulação ideológica, aliados de Kadafi dispararam vários tiros para cima, em Trípoli, e se reuniram na Praça Verde para celebrar a suposta vitória do regime. Enquanto isso, a emissora de TV Al-Libya, muito próxima a Seif Al-Islam ¿ um dos filhos de Kadafi ¿ informava que o exército marcha em direção a Benghazi, Trobruk, Misrata e Ras Lanuf, ¿recuperadas das mãos de grupos terroristas¿. A televisão também exibiu imagens de manifestações de alegria em Sirte e em Sebha (sul), duas cidades ainda não alcançadas pela insurgência. Se os opositores demonstram uma organização bastante limitada no front, no campo político a situação é diferente. Criado em 27 de fevereiro, os oito integrantes do Conselho Nacional Transitório reuniram-se pela primeira vez no sábado, em Benghazi, e assinaram uma espécie de decreto. No documento, o Conselho revela-se ¿o único representante de toda a Líbia, com seus diferentes estratos sociais e políticos¿. A entidade comprometeu-se a respeitar a vontade do povo por uma ¿existência livre e digna¿. ¿Pedimos à comunidade internacional que cumpra com suas obrigações para proteger a população líbia de genocídio e de crimes contra a humanidade, sem qualquer intervenção militar direta¿, conclui o decreto.