Título: Josué e o mundo espelhado no rio
Autor: Maluf, Renato S.
Fonte: Valor Econômico, 05/09/2008, Opinião, p. A12

Hoje completam-se 100 anos do nascimento de Josué de Castro. Muitas e merecidas manifestações sobre sua importância e legado vêm sendo difundidas nas últimas semanas, ainda que o conhecimento sobre sua vida e sua obra esteja, entre nós, muito aquém do que é devido a este humanista pernambucano, brasileiro, cidadão do mundo. Josué ultrapassou as fronteiras nacionais pela força de suas idéias e também pelas circunstâncias de vida que lhe foram impostas.

Como Celso Furtado e Paulo Freire, entre outros, ele foi banido do Brasil ao mesmo tempo em que seu pensamento era apropriado mundo afora e ele mesmo desempenhava funções de notoriedade internacional, sendo premiado pela Academia de Ciências dos Estados Unidos e recebendo três indicações ao Prêmio Nobel - duas vezes ao Prêmio da Paz e uma ao de Medicina.

Ainda mais grave, a sanha do regime militar lhe negou, para seu e nosso infortúnio, a possibilidade de retornar com vida ao país. Josué faleceu em Paris, em 1973. Triste ironia: o homem que se dispôs a desvendar o que considerava um dos tabus da nossa civilização - a fome como flagelo fabricado pelos homens, contra outros homens - tornou-se ele mesmo objeto de interdição.

Seria pertinente analisar a atualidade de suas formulações, consideradas clássicas justamente por ultrapassarem os limites do seu tempo. Contudo, destaco três componentes de sua vida e obra que, a meu ver, dão conta da sua relevância, alguns deles comumente lembrados. Primeiro, o pioneirismo. Josué realizou, em 1932, a primeira enquete sobre as condições de vida da classe operária brasileira, no caso, a do Recife.

Em seu livro mais conhecido, "Geografia da Fome", publicado em 1946, rompeu preceitos estabelecidos à época, ao associar o fenômeno da fome às mazelas do subdesenvolvimento, assim como antecipou o enfoque ecológico ao colocar o fenômeno da alimentação como a principal referência das correlações entre grupos humanos e os quadros regionais que ocupam. Josué foi o principal responsável pela introdução da nutrição em cursos universitários, órgãos de governo e mesmo como categoria profissional.

Ele escreveu: "Pela história dos homens e pelo roteiro do rio, fiquei sabendo que a fome não era um produto exclusivo dos mangues. Que os mangues apenas atraíram os homens famintos do Nordeste: os da zona da seca e os da zona da cana (...) e quando cresci e saí pelo mundo afora, vendo outras paisagens, me apercebi com nova surpresa que o que eu pensava ser um fenômeno local, era um drama universal (...) que aquela lama humana do Recife, que eu conhecera na infância, continua sujando até hoje a paisagem do nosso planeta como negros borrões de miséria: as negras manchas demográficas da geografia da fome".

--------------------------------------------------------------------------------

Preconceitos morais e interesses econômicos das minorias dominantes foram enfrentados pela sua abordagem da fome

--------------------------------------------------------------------------------

O segundo componente que destaco é o da sua coragem. No seu tempo, no seu mundo, abordar a fome da forma como ele abordou implicava enfrentar preconceitos morais e interesses econômicos das minorias dominantes. Com coragem, teve destacada atuação como homem público que se guiava por idéias e por compromissos com causas de ampla repercussão social.

Josué foi deputado federal por dois mandatos, criou entidades nacionais e internacionais relacionadas com a alimentação e a nutrição e dirigiu vários organismos, entre os quais o Conselho Executivo da FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação), o Comitê Governamental da Campanha Mundial de Luta Contra a Fome e o Centro Internacional para o Desenvolvimento (CID).

Fundou e presidiu a Sociedade Brasileira de Nutrição e dirigiu a Comissão Nacional de Alimentação, órgão que em 1956 institui no Brasil a Campanha da Merenda Escolar, que hoje é o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), o maior e mais antigo programa da espécie na América Latina.

Por fim, ressaltem-se as repercussões efetivas da ciência que ele praticou e ajudou a desenvolver, além de sua militância. Poucas pessoas sabem que a instituição do salário mínimo no país muito se deve a Josué de Castro; o primeiro inquérito sobre as condições de vida do trabalhador, realizado por ele, foi precursor do mínimo.

Publicou "Sete palmos de terra e um caixão", "Homens e caranguejos", "O livro negro da fome", "Geopolítica da fome", "Alimentação e raça", "A cidade do Recife e Fisiologia dos tabus", entre outras obras. "Não foi na Sorbonne nem em qualquer outra universidade sábia que travei conhecimento com o fenômeno da fome", escreveu em "Homens caranguejos". "O fenômeno se revelou espontaneamente aos meus olhos nos mangues do Capibaribe, nos bairros miseráveis da cidade do Recife (...) esta é que foi a minha Sorbonne: a lama dos mangues fervilhando caranguejos e povoada de seres humanos feitos de carne de caranguejo, pensando e sentindo como caranguejo".

Não por acaso, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) escolheu este humanista para ser o seu patrono. Neste dia 5 de setembro, o Consea promoverá uma celebração no Recife, cidade que o colocou no mundo, cidade que o viu crescer e de onde ele extraiu as referências que marcaram sua trajetória como cientista e homem público. Josué viu o mundo e seus dilemas espelhados no roteiro do rio, na lama do mangue - lama que "continua sujando até hoje a paisagem do nosso planeta como negros borrões de miséria: as negras manchas demográficas da geografia da fome".

À essa justa homenagem se associam governantes, começando pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, um de seus admiradores, organizações sociais, lideranças de vários setores e pesquisadores, entre outros. Resta-nos, agora, atuar no sentido de que a figura humana e as idéias de Josué de Castro estejam mais presentes nos meios de formação da população brasileira, sejam eles educacionais ou de comunicação.

Renato S. Maluf é economista, professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional.