Título: Agronegócio terá desafio adicional na convergência ao IFRS
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 09/09/2008, Investimentos, p. D5

As empresas do setor de agronegócios terão um desafio a mais no processo de convergência dos padrões contábeis brasileiros aos internacionais. Nada menos do que aquilo que está no centro de seus negócios, chamados na contabilidade de ativos biológicos. Entenda-se aí tudo que nasce, cresce e morre. De árvores e culturas variadas a rebanhos e matrizes animais reprodutoras.

Enquanto para praticamente todos os demais temas, é possível para empresas, contadores e auditores beber na fonte da experiência internacional, a contabilização de ativos biológicos não tem precedentes do que promete a escala brasileira.

Apesar de o padrão internacional IFRS, para o qual o Brasil está convergindo, ser usado em mais de cem países (União Européia, China, África do Sul, Rússia, Austrália e Nova Zelândia), o país deve gerar a maior variedade de conhecimento nessa área.

O país está oficialmente nessa rota desde a aprovação da Lei 11.638, no fim do ano passado. Mas, mesmo antes da lei, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e o Banco Central (BC) já haviam determinado que empresas abertas e bancos terão de, independentemente do avanço da regulação brasileira, apresentar balanços consolidados pela norma internacional a partir de 2010.

O IFRS determina que os ativos biológicos têm que ser ajustados no balanço pelo seu valor de mercado. Como, em geral, esse bens biológicos crescem ou engordam com o tempo, espera-se variação constante na avaliação. Correções negativas também podem surgir com as oscilações de preço nos ciclos internacionais, uma vez que esses ativos são, em boa parte dos casos, commodities.

Paul Sutcliffe, sócio líder no padrão internacional IFRS da Ernst & Young no Brasil, estima que a mudança de regras para ativos biológicos atingirá, de alguma forma, cerca de 10% das 100 maiores companhias brasileiras por valor de mercado listadas na Bovespa.

A Bovespa conta com empresas que potencialmente podem ser atingidas pela norma internacional das mais diferentes formas. Há companhias de papel e celulose, diversas sucroalcooleiras, outras de culturas variadas e ainda produtoras de alimentos. As empresas precisam, porém, ter os ativos sob seus cuidados. Os frigoríficos, por exemplo, na maioria dos casos, se preservam de grandes impactos por não criarem o gado.

Inglês, Sutcliffe acompanhou de perto a convergência européia ao IFRS, ocorrida entre 2001 e 2005. Mas conta que está tendo que desenvolver praticamente sozinho seus conhecimentos no tema, pois não há experiências do porte da brasileira no mundo.

"Só algumas coisas com rebanhos na Austrália e Nova Zelândia", comentou Sutcliffe. Ele explicou que na Europa, maior região a adotar o IFRS, o segmento de agronegócio não é tão forte como no Brasil e ainda menos presente no mercado de capitais. A regra nacional, quando houver (ainda nem está na fila para normatização), será inspirada na original internacional, a IAS 41 (sigla para padrão contábil internacional).

Para os investidores, a aplicação da regra internacional significará aumento da instabilidade dos números das empresas. Além disso, no primeiro ano de adoção, espera-se que o patrimônio aumente, uma vez que tais bens estavam registrados pelo custo.

"Necessariamente, haverá mais variação, vinda do mercado real desses produtos", explicou Fábio Cajazeira, sócio e especialista em mercado de capitais da PricewaterhouseCoopers (PwC).

As oscilações dos ativos biológicos, seja pelo desenvolvimento da cultura ou engorda do rebanho, serão lançadas na conta de receita da companhia. "A empresa reconhece um ganho que já aconteceu, mas cuja realização financeira ainda não foi finalizada", explicou Cajazeira. O sócio da Ernst & Young, Paul Sutcliffe, chama esse efeito de "antecipação de receitas".

A regra para ativos biológicos é bastante semelhante às recomendações do IFRS para ativos e dívidas financeiras: os ajustes de valor de mercado transitam por resultado. "O investidor precisa entender que a volatilidade que agora estará no balanço já existia na empresa, só não aparecia tanto no resultado", enfatizou Nelson Carvalho, presidente do conselho consultivo do Comitê de Normas Internacionais (Iasb) - órgão que elabora os princípios do padrão IFRS.

O especialista da PwC destacou ainda que, além da volatilidade pelo desenvolvimento do ativo biológico, as companhias também estarão sujeitas a refletir nos balanços fenômenos que não dominam, como alterações climáticas e alterações de qualidade nos produtos - que podem ter impacto positivo ou negativo sobre o valor desses bens.

A regra do IFRS para ativos biológicos avança em alguns conceitos da contabilidade tradicional e, por isso, possui diferenças significativas até mesmo frente ao padrão americano.

Diante de tantas novidades, os especialistas são unânimes em alertar para a necessidade de as companhias estudarem os impactos em seus negócios o quanto antes. Especialmente quando dentre os ativos biológicos estiverem bens pouco líquidos. Carvalho, do Iasb, explica que, nesses casos, será preciso desenvolver modelos de avaliação. "Nem todos os ativos têm um preço óbvio, pronto no mercado."

Porém, a despeito dos alertas, as companhias não parecem estar com a solução para esse desafio na ponta da língua. Ao contrário. A companhia de papel e celulose Aracruz ainda avalia o assunto e, por entender que a discussão é preliminar, preferiu não comentar o tema. A Cosan, líder no setor sucroalcooleiro, também avalia o tema. Os auditores da companhia estão estudando como tratar os ativos da empresa.

Quem está atenta à questão é a SLC Agrícola, companhia que abriu capital em junho do ano passado. A empresa, que possui diversos tipos de culturas - soja, milho, algodão e café -, ainda não definiu nem mensurou as conseqüências, mas vem buscando experiências para se espelhar.

Entre os raros casos, a companhia encontrou a russa Black Earth Farming, cuja atuação é muito semelhante à empresa brasileira. Listada na Bolsa de Luxemburgo, a empresa segue o IFRS. A companhia ainda está em fase de investimentos e, no ano passado, da receita líquida de US$ 10,6 milhões, US$ 1,4 milhão foi proveniente do crescimento de suas culturas e do ajuste aos preços de mercado - ou seja, da aplicação do IAS 41.

Nelson Carvalho, do Iasb, e um dos principais atores do cenário de convergência contábil brasileira, alerta para o fato de o debate ser ainda maior. Ele destacou que não só as empresas abertas terão de seguir o padrão internacional, quando o processo de normatização estiver completo no Brasil. As companhias com faturamento anual superior a R$ 300 milhões ou ativos totais maiores que R$ 240 milhões, que a partir deste ano precisam produzir e auditar seus balanços, também serão atingidas pela norma quando essa estiver em vigência no Brasil.