Título: Excesso de risco e socorro inevitável
Autor: Lucchesi, Cristiane Perini
Fonte: Valor Econômico, 09/09/2008, Finanças, p. C1

A falta de regulamentação adequada do mercado de crédito imobiliário americano permitiu que empresas privadas de hipotecas garantidas pelo Tesouro dos Estados Unidos se aventurassem a tomar risco excessivo, tornando agora inevitável o socorro a essas instituições diante do perigo de contágio internacional e custo social maior. Essa é a opinião de economistas e analistas sobre o pacote de salvamento da Fannie Mae e da Freddie Mac, que pode chegar a US$ 200 bilhões.

As bolsas americanas reagiram bem à intervenção, que trouxe alívio a detentores de dívida e acionistas. Mas os analistas duvidam que ela seja suficiente para estancar a crise no mercado de crédito que já dura mais do que um ano. Alguns dos especialistas consideram ainda que a forma de socorro não foi a mais adequada. Argumentam que ela amplia o chamado "risco moral" ("moral hazard") - o comportamento cada vez menos cauteloso estimulado pela certeza do socorro do Estado.

"Todos querem ser trapezistas se a rede é do Tesouro americano", afirma o ex-presidente do Banco Central e sócio da Tendências Gustavo Loyola. Foi Loyola que esteve à frente do Banco Central brasileiro na época do Proer (Programa de Reestruturação e Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional), que durou de 1995 a 1997 para socorrer bancos em dificuldade no Brasil.

Segundo Loyola, não é possível comparar o Proer com a intervenção na Freddie Mac e Fannie Mae, pois essas empresas tinham garantia do Tesouro dos Estados Unidos. "É um modelo complicado, que não temos no Brasil", comenta. "O Tesouro americano é garantidor de última instância de uma empresa do setor privado", diz. O Proer socorreu credores de bancos privados e sem qualquer garantia, disse.

Acreditando na garantia do Tesouro americano é que estrangeiros, inclusive bancos centrais asiáticos que fogem do risco, chegam a deter 20% da dívida de longo prazo total das duas empresas, de US$ 1,3 trilhão (total de US$ 1,9 trilhão), lembra o professor e economista pós-keynesiano Paul Davidson. A China e o Japão são os maiores detentores, com US$ 376 bilhões e US$ 229 bilhões, respectivamente. "As duas empresas são muito grandes para quebrar", argumenta Davidson.

Pelo plano de socorro elaborado pelo Tesouro americano com a assessoria do Morgan Stanley, os detentores da dívida - sênior ou subordinado - não terão redução no valor de face dos papéis. A intervenção, no entanto, foi considerada evento de crédito e detonou os pagamentos das proteções contra inadimplência dos cerca de US$ 62 trilhões dos swaps de crédito (CDSs) das duas agências.

A Fannie Mac e a Freddie Mae são diferentes de instituições no Brasil também em outro aspecto: os bancos tinham estímulo fiscal para comprar ações das agências, que entravam com status especiais nos balanços, lembra John Mauldin, do site Investors Insight. A maior parte das US$ 36 bilhões em ações preferenciais das duas entidades está justamente nas mãos dos bancos e seguradoras americanos, que já registram baixas contábeis de mais de US$ 500 bilhões com o estouro da bolha imobiliária americana.

O Tesouro dos Estados Unidos, ao ficar com 79,9% do capital das duas agências em troca da injeção gradual de recursos que será feita a cada trimestre, na medida das necessidades, não eliminou os atuais acionistas preferenciais. Eles ficam sem dividendos até o final de 2009, mas apenas sofreram diluição, pois continuam com os 20,1% do capital das duas agências. Nouriel Roubini, do site RGE Monitor, considera que essa não foi a forma mais adequada de intervenção, pois beneficiou os acionistas e os detentores de dívida subordinada, que por excelência fizeram investimentos mais arriscados e tiveram os maiores lucros nos últimos anos, estimulando o "risco moral". "A coisa mais assustadora é que o comportamento de entrar na jogatina em troca de salvamento garantido não é uma exceção na indústria de hipotecas, é normal", escreve ele.

Para Loyola, se o Tesouro dava garantias à Freddie Mac e à Fannie Mae, deveria regulamentá-las de forma mais eficiente e ter maior controle sobre os riscos que elas estavam tomando. "Qualquer economista, por mais liberal que seja, concorda que a seguradora tenha um controle sobre o segurado", afirma Loyola. Segundo ele, o sistema de governança das duas agências vinha sendo criticado há tempos. De acordo com Mauldin, as duas agências - que garantem dívidas de US$ 5,3 trilhões, a metade do financiamento hipotecário americano - tinham nível de alavancagem de 40 a 50 vezes, semelhantes aos do LTCM e do Carlyle, dois fundos de hedge que quebraram. A Freddie Mac e a Fannie Mae se tornaram fundos de hedge com garantias públicas.

No Proer foi diferente, segundo Loyola, pois foram socorridos os credores, principalmente os pequenos depositantes, que não sabiam o risco que tomavam, e não os acionistas. "É fantástico o país mais liberal do mundo ter de estatizar. É o enterro do neoliberalismo de uma maneira trágica", afirmou em Brasília à "Folha Online" a economista Maria da Conceição Tavares."Custou uma fortuna", afirmou. "O nosso Proer foi mais baratinho", disse ela.