Título: Por que não?
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 10/09/2008, Opinião, p. A12
O governo brasileiro, desde a época em que era colônia, reprimiu o uso de divisas de outros países e impôs um controle rígido nas relações financeiras com o exterior. As motivações foram a escassez de moedas fortes, a voracidade fiscal e o xenofobismo. A burocracia era desproporcional e o tratamento dado à posse de divisas era passional, chegando ao ponto de criminalizá-la. O resultado foi uma legislação cambial complexa, obsoleta e inadequada aos interesses atuais do país, e um esquema paralelo de negociação e sonegação de divisas.
Houve avanços nos últimos anos: a regulamentação cambial foi simplificada e as relações financeiras com o exterior ficaram menos emperradas. Entretanto, algumas lacunas permanecem. Uma, importante, é que não é possível abrir contas em moeda extrangeira num banco no Brasil. Um exportador brasileiro pode ter conta em divisas (dólar, euro etc.) no exterior, mas não no Brasil. Bancos brasileiros oferecem contas em dólares fora do país para brasileiros e estrangeiros, mas não podem prestar o serviço aqui. O risco para um banco brasileiro de ter correntistas lá é idêntico ao daqui, entretanto, o ônus é diferente. Estamos perdendo uma oportunidade e exportando empregos diretos e indiretos.
Em São Paulo, diariamente são negociados bilhões de dólares em contratos futuros. Investidores estrangeiros aplicam suas poupanças, em euros, em ativos brasileiros de renda variável e renda fixa, num volume cada vez maior. Fundos brasileiros, em que não há restrições para poupadores residentes aqui, podem aplicar de 10% a 20% de seu patrimônio no exterior. Entretanto, um banco estabelecido aqui não pode oferecer conta em divisas.
Qualquer cidadão brasileiro pode fazer uma compra no exterior diretamente ou através da internet, em outra moeda, e pagar com seu cartão de crédito do Brasil, convertendo o valor à taxa de câmbio do dia do pagamento. Pode também ir a um banco autorizado e comprar dólares, euros e pesos argentinos e guardar em sua residência, mas não pode deixar essas divisas depositadas na agência bancária onde fez sua compra. Se quiser poupar para uma viagem ou uma compra futura terá que guardar os pesos ou euros em sua casa. Não faz sentido.
O Brasil possui um sistema financeiro sofisticado e seguro que tem capacidade de oferecer contas em divisas para seus residentes. Há vantagens em autorizar o serviço que devem ser consideradas. A primeira é a criação de empregos primários no sistema bancário e o efeito multiplicador da prestação do serviço a outros setores. A disputa pela oferta de serviços financeiros está se globalizando cada vez mais e quem sair antes abocanhará uma fatia maior do mercado. A autorização de conta em divisas faria com que brasileiros com contas no exterior usassem o serviço local. Além disso, atrairia residentes de países vizinhos a aplicar suas poupanças em bancos sediados no território brasileiro.
-------------------------------------------------------------------------------- O brasileiro pode comprar divisas, mas não pode depositar nos bancos, tem de guardar em casa; não faz sentido --------------------------------------------------------------------------------
Há um ganho em transparência com a autorização de contas aqui. Atualmente, a fiscalização de operações em divisas envolve necessariamente a cooperação de autoridades bancárias de outros países; é mais simples acompanhar as transações internas, mesmo que denominadas em divisas estrangeiras. Outrossim, com a legalização de contas em outras moedas, todo o esquema de doleiros, black market, mercado paralelo etc. será menos utilizado, uma vez que muitas dessas transações migrarão para o sistema oficial.
Há também uma vantagem fiscal a considerar. O Brasil tem US$ 200 bilhões de reservas, boa parte é conseqüência da esterilização do saldo comercial. O custo de carregar essa posição é da ordem de US$ 20 bilhões ao ano (diferença da taxa de juros externa e interna vezes o valor aplicado). Se os residentes pudessem ter as contas em divisas, arcariam com parte do custo, e, dessa forma, proporcionaria uma economia para os cofres públicos.
Uma preocupação com a permissão de conta em divisas era que isso dolarizasse a economia brasileira. Não faz sentido. O nível de dolarização da economia brasileira e da poupança de residentes em ativos no exterior é o mais baixo da América Latina; a razão é que o sistema financeiro brasileiro é sólido e soube preservar a poupança pública. O real é uma moeda forte e o Banco Central do Brasil tem controles seguros de risco cambial. Os argumentos de aumento do risco sistêmico não procedem aqui.
Atualmente, há cerca de 3,5 milhões de brasileiros que vivem no exterior e aproximadamente 1,5 milhão de estrangeiros residentes no país. A autorização de contas em divisas simplificaria sua vida financeira e melhoraria suas relações com seu país de origem. A conta em divisas aqui abre a oportunidade para que mais serviços, atualmente disponíveis no exterior, sejam oferecidos aqui, como seguros e planos de previdência. Enquanto no passado o governo auferia lucros com a reserva de mercado de moeda estrangeira, pois a diferença entre a taxa de compra e de venda era elevada, atualmente a renda dessas transações é auferida pelo setor privado.
Toda a parafernália cambial surgiu num Brasil em que havia uma escassez crônica de divisas, a abertura comercial com o exterior era mínima e o sistema bancário local era fechado e atrofiado. Atualmente, há abundância de divisas, a integração comercial e financeira é cada vez maior (leia-se Embraer, Ambev, etc.) e o sistema bancário brasileiro está se internacionalizando com um padrão semelhante ao dos países mais desenvolvidos. Há bancos brasileiros disputando operações com concorrentes estrangeiros na Argentina, na Europa e nos Estados Unidos. É uma indústria que tem competitividade global demandando um reposicionamento estratégico. É anacrônica a restrição a contas em divisas para residentes no Brasil. Deve ser removida. Por que não?