Título: A mulher pode...
Autor: Cortês, Iáris Ramalho
Fonte: Correio Braziliense, 10/03/2011, Opinião, p. 23

Advogada e sócia do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA)

¿O Brasil tem uma presidenta.¿ Não encontro frase melhor para começar este artigo sobre o mês da mulher de 2011. Parece um sonho que de tão sonhado se tornou realidade.

E lembrar que antes de 1932 não podíamos votar, que só em 1933 tivemos a primeira deputada. Senadora (suplente) em 1979, eleita só em 1990. No Executivo, foi em 1982 que uma mulher assumiu pela primeira vez um Ministério e em 1995, um governo de estado.

E agora, já podemos descansar em berço esplêndido e guardar nossas faixas, panfletos e camisetas com frases de impacto? Vamos usar o 8 de março como recordação das lutas que deflagramos por décadas e décadas?

A vitória de uma mulher para a presidência da República já começou a provocar uma mudança cultural. A frase ¿a mulher pode¿ tem sido repetida na sociedade de forma não mais jocosa ou reivindicatória, e sim com um misto de seriedade e constatação.

Então, se ¿a mulher pode¿, vamos elevar para 50% o número de mulheres no Congresso Nacional. É maravilhoso saber que tem uma mulher na Mesa Diretora da Câmara, mas quando vemos que não são dois lugares e, sim, onze, vem a vontade de gritar: só temos uma mulher na Mesa Diretora!

Nas 20 comissões permanentes da Câmara, apenas uma tem uma mulher como presidenta; no Senado, nenhuma mulher na presidência. Para vermos paridade nas comissões, sem esperar mais 80 anos, basta que aprovem proposta que tramita no Congresso, determinando a presença obrigatória de mulheres nas mesas diretoras e comissões.

A reforma política está na ordem do dia. Se ¿a mulher pode¿, é preciso uma reforma ampla, que possibilite às mulheres participar da política em igualdade de condições com os homens. Com vontade política, é possível adotar o sistema de listas fechadas com alternância de sexo, que tem dado certo em vários países e o financiamento público de campanha, com percentual obrigatório para ser utilizado pelas mulheres.

No alto escalão do Poder Executivo, nunca o Brasil viu tantas mulheres. Ali, a presença delas cresceu 75%. Dos 37 ministérios, nove são chefiados por mulheres. No entanto, ainda não vemos uma saia sequer em postos de comando na Advocacia-Geral e Controladoria Geral da União, Banco Central, Casa Civil e Gabinete de Segurança Institucional.

Alguém pode imaginar que, em um país cuja cadeira presidencial é ocupada por uma mulher, existam lares onde outras mulheres são maltratadas, espancadas, violadas e mortas?

Em outro sonho, que também se tornou realidade, conquistamos uma lei que cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher (Lei 11.340/2006). Mas esta lei sofre grande risco de se tornar inoperante exatamente pelos Poderes da União: o Executivo, ao não disponibilizar recursos para a aplicação da lei em sua totalidade, não prover serviços de atendimento às vítimas, desenvolver programas e campanhas de enfrentamento à violência e outras ações previstas; o Judiciário, ao arquivar denúncias de violações, questionando a constitucionalidade da lei, tentando colocá-la no mesmo patamar da Lei dos Juizados Especiais ¿ que tratava a violência contra as mulheres como um acidente de trânsito, liberando os agressores com o pagamento de uma cesta básica. Com tais interpretações o Judiciário considera que a mulher não deve se libertar do julgo dos homens, nem deve ser tratada com dignidade. Por fim, o Legislativo, ao propor alterações à lei de forma isolada, retorcendo seu conteúdo, ignorando a filosofia de sua criação, retrocedendo em ações essenciais a uma vida digna e sem violência. Tais propostas, se aprovadas, descaracterizarão a lei.

Se ¿a mulher pode¿, por que ainda recebe salários menores que os homens? Por que não se regulamenta o trabalho informal e se reconhece o tempo dedicado ao trabalho doméstico não remunerado para fins de aposentadoria? E dentro de casa, será que a mulher também ¿pode¿? Pode dividir com o companheiro as tarefas domésticas, a criação dos filhos e a hora do lazer?

E a saúde da mulher deste país que pode ter uma presidenta? Quando extinguiremos mortes maternas evitáveis, muitas vezes causadas por abortos clandestinos e malfeitos? A questão é séria e deve ser tratada sem hipocrisia. A realidade é que, quando a mulher pode pagar, encontra clínicas especializadas e o procedimento é feito em segurança. Se não pode, recorre a estabelecimentos de fundo de quintal. Não adianta juiz, padre/pastor ou delegado querer evitar, dizer que é crime, pecado ou levá-la à prisão. Elas continuarão a fazê-lo porque ter ou não ter filhos é um direito inerente ao seu corpo, questão íntima e intransferível.

Assim, neste 8 de março em que uma mulher pode ser presidenta do país, muitas brasileiras ainda lutam contra a discriminação, o preconceito, a falta de paridade e não podem exercer seus direitos. Para que a ¿mulher possa¿, de fato, é preciso muita vontade política para avançar no reconhecimento e na promoção de sua cidadania plena, rumo à consolidação de um país plenamente democrático.