Título: Dança internacional de ativos
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 12/09/2008, Opinião, p. A12

No artigo "O risco da bolha chinesa" (Valor, 05/09/2007), há um ano atrás, afirmei que "sob a sombra de uma conjuntura nebulosa em riscos e incertezas novos, a ameaça que cresce sorrateira e com potencial de estragos exponencialmente superior à crise do subprime é a bolha bursátil chinesa". A bolsa de valores chinesa, nos últimos dez meses, desinflou quase tão avidamente quanto inflou. A priori, os estragos ainda não são de todo perceptíveis, mas é exatamente agora, sob um quadro conjuntural de maior vulnerabilidade financeira, que os riscos crescem.

As conseqüências do recuo no valor de mercado de expressiva parte do capital chinês incidirão sobre o setor produtivo, afetando a demanda por produtos do resto do mundo. A economia da China cresceu nos últimos cinco anos (2003-07) a uma taxa de 10,6% ao ano. Vinha tendo expansões consecutivas na margem de crescimento desde que se inseriu na Organização Mundial do Comércio (OMC). Em 2008, mesmo tendo como grande marco a realização da Olimpíada de Beijing, sua economia, pela primeira vez neste século, crescerá menos em relação ao ano anterior, com expansão prevista de 9,3% de seu PIB. Em 2009, na margem, deverá crescer ainda menos, cerca de 9,0%.

Sem dúvida, ainda são padrões de crescimento altíssimos - logo, seguirão havendo muitos bons negócios a serem aproveitados pelo empreendedorismo brasileiro. Entretanto, há conseqüências macroeconômicas daí derivadas que precisam ser consideradas. Estes pontos percentuais a menos de crescimento significam uma menor demanda por produtos do resto do mundo, com conseqüências para as cotações internacionais de commodities minerais e agrícolas, e para a saúde das contas externas dos países de quem comprar mais.

Ainda é o menos provável, mas não de todo descartável, o risco de perdas ainda mais expressivas. A "crise do subprime" desencadeou efeitos deletérios sobre o nível de produção e emprego nas economias americana e européia. Agora, cabe atenção com relação à intensidade com a qual o derretimento da Bolsa de Valores de Xangai vai incidir sobre os níveis de renda na China. Sobretudo, porque daí poderia emergir uma onda ainda mais destrutiva de renda para o resto do mundo do que a já vivenciada após o derretimento de valor das hipotecas nos Estados Unidos.

É preciso muita atenção neste momento de forte volatilidade nos mercados. Por um lado, o comportamento do mercado de capitais da China é uma ameaça pela possibilidade de uma nova onda de grandes perdas; por outro, há uma dança de ativos na busca de altas rentabilidades no curto prazo que pode impor perdas se seu risco não for bem precificado.

O problema do subprime nos EUA explodiu em 24 de julho de 2007, dia em que a Countrywide Financial levou a público os péssimos resultados de seus demonstrativos contábeis, causando uma queda de 1,62% no índice Dow Jones - a primeira de muitas e subseqüentes - e, de tabela, provocando a pior retração do Ibovespa em um ano e meio de pregões.

Antes daquele dia (24/07/07), o índice Shangai SE estava em 4.213 pontos, e acumulava uma alta já expressiva de 150% em doze meses. Após a deflagração da crise nos EUA, todas as bolsas de valores viveram meses de forte queda no valor de seus papéis, menos uma, que caminhava descolada da turbulência que sacudia o resto do mundo. Após o estouro da bolha imobiliária norte-americana, a valorização observada nos índices bursáteis chineses inflou a ritmo intenso. Apostando na pujança econômica da China, que detinha as maiores taxas de crescimento econômico do mundo, e sem perspectiva de rentabilidade em outros mercados, o capital especulativo internacional demandou fortemente as ações de Xangai. Entre 24/07 e 16/10/07 (quando então atingiu seu pico histórico e chegou a 6.396 pontos), enquanto todas as bolsas de valores derretiam, o Shangai SE foi apreciado em mais 52%.

-------------------------------------------------------------------------------- A bolsa de valores chinesa "derreteu" nos últimos dez meses e, com certeza, tal estrago já deixou marcas ainda encobertas --------------------------------------------------------------------------------

Daí para frente, seu valor só fez derreter. A queda acumulada desde 16 de outubro do ano passado até aqui já é de impressionantes 64%, estando o índice recuado para menos de 2.300 pontos, retornando ao patamar de dezembro de 2006. Com certeza, tal estrago já deixou marcas e seqüelas, por ora ainda encobertas.

O risco é ainda maior à medida que se sabe que a economia chinesa não tem um monitoramento econômico de máxima qualidade, não havendo um acompanhamento minucioso e transparente dos resultados domésticos. Esta ausência de medidores com maior precisão faz com que a incerteza seja maior. Por isso é ainda mais fundamental que os investidores mantenham os olhos bem atentos.

As bolsas asiáticas, encurraladas por um lado pela situação econômica agonizante no eixo do Atlântico Norte (EUA-Europa), e por outro pelo derretimento bursátil chinês, também sofreram perdas em escala importante no período de 16/10/07 para cá. O índice Hang Seng, de Hong Kong, caiu 30% neste intervalo de tempo; o KLSE Comp, da Bolsa da Malásia, retraiu-se em 21%; e o Nikkei, da Bolsa do Japão, teve uma queda acumulada de 26,7% e um recorde: doze pregões consecutivos no negativo, entre 19 de junho e 4 de julho de 2008. A renda destas economias igualmente se retrairá na margem.

Com este expressivo derretimento bursátil, o capital especulativo internacional, tentando desfrutar da globalidade dos mercados para minimizar suas perdas, "saiu para a dança". Para efeito de se ter uma referência, em 24/07/07, no estouro do subprime, o barril do petróleo estava cotado a US$ 73,5 e o bushel da soja a US$ 8,20. Como a primeira corrida especulativa foi em direção à Bolsa de Xangai, a variação de preço foi pequena em relação a 16/10/07, quando as ações chinesas chegaram ao cume de sua escalada. A esta data, o petróleo valia US$ 86,1 e o a soja custava US$ 9,77.

Quando Xangai inverteu a tendência, o capital especulativo, sentindo o cheiro dos problemas de equilíbrio entre oferta e demanda nos mercados de commodities agrícolas e minerais, induziu um efeito de manada rumo às aplicações nos mercados futuros destas cotações. Daí para frente, o preço das commodities disparou. O barril do petróleo iniciou escalada até atingir o cume em 14 de julho de 2008, cotado a US$ 145,2, e o preço do bushel da soja subiu para US$ 16,30. Na dança internacional de ativos, enquanto a bolsa chinesa caiu 64%, o petróleo ficou 68,5% e a soja 66,8% mais caros.

A tendência agora mudou. Mas os novos passos desta dança ainda são incertos. Nos últimos 30 dias, o preço das commodities desinflou de forma expressiva. Para onde este capital está migrando, se as bolsas seguem sob forte instabilidade e com viés negativo? A valorização do dólar frente às principais moedas mostra que parte expressiva está voltando aos Estados Unidos. Em parte, para tapar os buracos financeiros deixados pelas perdas no mercado das hipotecas, mas os resultados dos mercados de capitais nos EUA indicam que nem tudo está voltando para fechar balanço. Só que as condições estruturais da economia americana não mudaram de forma expressiva. Assim, é preciso se manter atento, pois logo, logo, é bem possível que o capital especulativo saia para novas danças.

A turbulência recente é mais um capítulo deste processo de desalavancagem, sendo um novo ajustamento de preço dos ativos. A questão agora é monitorar quais serão os próximos passos nesta dança, pois só assim serão evitadas perdas ainda maiores.

Marcel Pereira é economista-chefe da RC Consultores.