Título: Estudos para definir áreas indígenas no MS geram polêmica
Autor: Maia, Samantha
Fonte: Valor Econômico, 15/09/2008, Brasil, p. A4

O Estado do Mato Grosso do Sul (MS) hoje é considerado prioritário pela Fundação Nacional do Índio (Funai) para a demarcação de terras indígenas. Os estudos envolvem cerca de 10 milhões de hectares de áreas férteis em 26 municípios ao sul do Estado que, além de serem as mais produtivas - concentram 30% dos estabelecimentos agropecuários do MS -, passam por forte expansão da cultura de cana-de-açúcar voltada para a produção de etanol. O processo já causa atrito com empresários do agronegócio da região.

O voto do ministro Carlos Ayres Britto, do Supremo Tribunal Federal (STF), no caso da reserva indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, pela manutenção da demarcação contínua da área indígena e retirada imediata dos arrozeiros instalados na região, deixou os produtores do Mato Grosso do Sul mais preocupados. "Com essa decisão, o pânico aumenta, mas aqui é diferente, não existem terras devolutas, temos proprietários titulados", diz Alexandre Bastos, advogado da Associação dos Municípios de Mato Grosso do Sul (Assomasul).

Paulo Santilli, coordenador geral de identificação e demarcação de terras indígenas da Funai, responde que a ação de demarcação não tem um procedimento geral. Dessa forma, não é possível comparar o trabalho realizado em Raposa Serra do Sol com os demais. Após a investigação em campo, algo que pode levar até 73 dias, os técnicos terão oito meses para finalizar os estudos. A Funai tem até junho de 2009 para apresentar os relatórios de identificação e delimitação das novas terras, sob pena de multa diária de R$ 1 mil. O Sul do Estado concentra aldeias de índios guarani-kaiowá.

Os estudos, no entanto, nem começaram e os produtores já tentam barrá-los na Justiça. Por enquanto, conseguiram obter uma liminar que obriga a Funai a avisar com dez dias de antecedência ao dono da terra quando entrará em sua propriedade para realizar as vistorias. Eles argumentam que a insegurança trazida pelo início dos estudos, determinados no dia 10 de julho por seis portarias da Funai, tem afetado a economia local. O preço da terra e a produção, porém, continuam em ascensão. A Funai têm o desafio de combater problemas urgentes da população indígena - como aumento do alcoolismo, mortalidade infantil, suicídio e desnutrição - numa região em que a ocupação do solo pela agricultura é cada vez mais intensa e dentro da legalidade.

Os últimos levantamentos sobre preço da terra e produção no Estado mostram uma economia em ritmo forte de crescimento. De janeiro a junho deste ano, segundo levantamento da consultoria AgraFNP, o preço do hectare da terra nos municípios estudados pela Funai subiu de 1,4% em Ponta Porã, no caso das terras de alta produtividade, a 26,87%, em Rio Brilhante e Maracaju. As terras de baixa produtividade em Ponta Porã subiram 3,88%. Em Mundo Novo e Eldorado, a terra teve valorização de 3,57%, em Naviraí e Caarapó, de 7,14%, e em Jardim e Bonito, 2%.

O Estado é o maior produtor de soja do país, e a região sul concentra 61% dessa produção, um total de 1,7 milhão de hectares. Essa cultura, porém, tem se mantido estável nos últimos meses. A grande aposta hoje da economia do Mato Grosso do Sul é a cana-de-açúcar.

Jacqueline Bierhals, gerente de agroenergia da AgraFNP, diz que até o momento não é possível sentir perdas nas negociações de investimentos na região estudada pela Funai. "Temos contato com muita gente, e por enquanto ninguém falou nada sobre suspender investimentos. A produção de cana na região deu uma aquecida a partir de 2006, e quem compra terra pensa no longo prazo", diz ela.

Segundo levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a área plantada de cana-de-açúcar no Sudoeste de Mato Grosso do Sul passou de 46 mil hectares para 80 mil, entre 2000 e 2006. Na região da cidade de Dourados, a área passou de 29 mil hectares para 47 mil.

A área produzida no Estado na safra de cana deste ano é 36% maior que a do ano passado, e a produção cresceu 41%, segundo estimativa da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). A extensão dessas áreas - 275,8 mil hectares - porém, ainda é pequena se comparada à soja. O milho, que possui área plantada maior, de 964,8 mil hectares, também teve crescimento forte este ano, de 15% das terras, e de 21% da produção.

Wellington Silva Teixeira, analista de mercado de cana-de-açúcar da Conab, diz que dificilmente haverá rápida retração dos investimentos em produção de etanol na região. "A cultura de cana é a mais intensa no Estado nos últimos anos, e o governo está com diversos incentivos", diz. Hoje, há 23 usinas de cana sendo instaladas no Estado e há planos de instalação de mais 9 no próximo ano.

Segundo Santilli, da Funai, hoje o espaço reservado aos índios no Estado não comporta a manutenção das suas atividades. "É urgente o procedimento de regularização e identificação dessas terras, porque as áreas reservadas não comportam a população ", diz o coordenador.

Estima-se que haja cerca de 40 mil índios vivendo no Mato Grosso do Sul. "Há um grande atraso histórico, muito se fez na Amazônia, mas fora dela as dificuldades de regularização são maiores, pois são territórios mais povoados", diz Santilli. A Amazônia concentra hoje 98,6% das terras indígenas regulamentadas, número bem superior à porcentagem de índios brasileiros na região, de 60%, o que mostra o atraso das demarcações no resto do país.

A usina São Fernando foi instalada recentemente em Ponta Porã, um dos municípios em estudo pela Funai, e comprou 2,3 milhões de toneladas de cana de produtores em Ponta Porã e Dourados para produzir 220 milhões de litros de etanol a partir de maio do ano que vem. Segundo José Renato Nóbrega de Almeida, diretor administrativo e financeiro da usina, os fornecedores de cana estão assustados com a possibilidade de perda das terras para demarcação, mas ainda não há queda na produção. "A produção não diminuiu, mas projetos de investimento que estavam no papel com toda certeza encontram-se parados, aguardando o desfecho da demarcação", diz .

O aumento da cana tem sido uma resposta às políticas de incentivo do governo estadual, que hoje também olha com preocupação os estudos da Funai. "A notícia teve um impacto inicial negativo, mas agora a poeira abaixou um pouco. Primeiro, tem que ter calma, saber exatamente o que está acontecendo. Não saber que áreas serão estudadas deixa uma insegurança grande, a portaria que permite os estudos da Funai é muito vaga. Muitos produtores nos ligam para pedir informações", diz a secretária estadual da Produção, Tereza Cristina Corrêa da Costa.

Ela admite que há casos de aldeias saturadas, mas defende que a política de demarcação seja algo comum entre o Estado e a União. "Não temos nada contra os índios, mas a Funai tem que ter cuidado, porque aqui todas as pessoas têm título da terra, e essa é a região mais fértil do Estado", diz ela. A secretária diz que o Estado tem aguardado uma definição mais clara sobre o trabalho da Funai, e pedido reuniões com representantes do órgão, para que possa tirar dúvidas dos produtores.

Os empresários, representados pela Federação da Agricultura e Pecuária do Mato Grosso do Sul (Famasul), também reivindicam diretamente informações mais precisas sobre quais áreas serão visitadas pelas equipes de técnicos da Funai. Santilli diz que não é possível saber com exatidão os locais que devem ser transformados em reserva antes dos estudos serem finalizados. Eles servirão justamente para identificar as comunidades, mapear a região e entender a dinâmica de ocupação por não-índios, ou seja, os agricultores. "É preciso ter entendimento entre as partes envolvidas. De maneira nenhuma queremos reconstituir os territórios originais, mas precisamos garantir a convivência nos locais", diz.

Ademar Silva Junior, presidente da Famasul, reclama, porém, que existe pouco espaço para parceria com a Funai. Segundo ele, a forma da fundação tratar a questão dos índios da região afasta as comunidades e os produtores são proibidos pela Funai de entrar nas aldeias. "Não é a quantidade de terra que vai resolver os problemas indígenas e sim haver assistência, políticas de saúde", diz.

Hoje, há cerca de 300 reivindicações de demarcação de terras indígenas no país, das quais 108 estão sendo estudadas em 18 Estados: Mato Grosso do Sul, Pará, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Acre, Mato Grosso, Bahia, Pernambuco, Paraná, Rio Grande do Sul, Amazonas, Santa Catarina, São Paulo, Alagoas, Ceará, Tocantins, Amapá e Rondônia. Em São Paulo, por exemplo, estão sendo estudadas as reservas de Barão de Antonina e de Itaporanga.

No dia 3 deste mês, a Funai publicou nova portaria determinando a formação de dois grupos técnicos para estudar mais dois municípios do Mato Grosso do Sul, Miranda e Aquidauana, a noroeste do Estado. Os estudos deverão ser concluídos em 60 dias.

Após a fase de estudos de identificação, as reservas devem ser aprovadas pela Funai e submetidas a período de contestações, quando os interessados podem se manifestar e propor mudanças. Ao fim dessa fase, o Ministério da Justiça declara os limites da terra indígena. A Funai estabelece a demarcação física e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) cuida do reassentamento de ocupantes não-índios. Por último, o presidente da República homologa a demarcação, que poderá ser registrada. A expectativa da Funai é que o processo no Mato Grosso do Sul seja concluído em 2010.