Título: Brasil se opõe a projeto de países ricos para criar patentes globais
Autor: Assis Moreira e Vera Saavedra Durão
Fonte: Valor Econômico, 21/02/2005, Brasil, p. A2

As relações entre o Brasil e a direção da Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI) sofreram um novo baque, envolvendo a negociação de um tratado de patente global que Brasília rejeita. Negociadores acham que o país foi atraído para uma situação embarçosa ao participar de consulta informal realizada pelo diretor-geral da OMPI, Kamil Idriss, na semana passada com cerca de 20 países em Casablanca (Marrocos). O representante brasileiro, Roberto Jaguaribe, presidente do Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (INPI), foi o único que se recusou a assinar um plano de trabalho aprovado no encontro e que, na prática, pretende acelerar as negociações do tratado de harmonização de leis de patente no mundo. Como os aliados brasileiros contra essa negociação não foram convidados, o resultado deixou a impressão de que o Brasil ficou isolado na cena internacional. Entre as nações em desenvolvimento presentes, México e Marrocos tem acordos comerciais com os EUA e defendem o tratado. Entre os emergentes, também participaram China, Chile, Malásia, Rússia, além dos maiores interessados: Estados Unidos, Grã-Bretanha, China, França, Alemanha, Itália e Japão. Também estiveram presentes organizações de propriedade intelectual da Europa, Ásia e continente africano. O Brasil lidera a oposição ao tratado por achar que ele pode se tornar um novo instrumento de pressão, inclusive comercial, contra as nações em desenvolvimento. A criação de patente global faz parte da agenda dos Estados Unidos e outros industrializados. Um pilar desse projeto é o Tratado de Direito Substantivo de Patente, para harmonizar os critérios de concessão de patente. Só que ele vai bem além do Acordo de Trips (propriedade intelectual) da Organização Mundial de Comércio (OMC). Este especifica três critérios para patentear uma invenção: novidade, atividade inventiva e aplicabilidade industrial. Mas não diz como se deve aplicar esses critérios, deixando margem de manobra aos países. Assim, certos países consideram que algumas invenções patenteadas em um país não podem receber proteção local. É o caso de software, patenteado nos EUA, mas não na maioria das outras nações. Já um tratado de harmonização global de patentes tem outras implicações. Uma patente dada nos EUA teria obrigatoriamente que ser aprovada com base no mesmo critério nos outros países signatários, diz um negociador. No caso especifico do Brasil, o primeiro impacto seria proibir a atual prática envolvendo as patentes farmacêuticas, que precisam de anuência prévia da Anvisa. Várias disposições da lei de propriedade industrial teriam que ser mudadas. Por exemplo, o país não aceita patentear micro-organismos que ocorram livremente na natureza. Nos EUA, um cientista poder extrair substância de uma planta, submetê-la a processo químico, isolar um componente e patenteá-lo. Mas para vários países isso não é invenção, é sim uma descoberta. O presidente do INPI, Roberto Jaguaribe, disse ao Valor, que a posição brasileira diverge da proposta de dividir as negociações sobre como harmonizar as formas de considerar e conceder patentes. Alguns países, com destaque para os desenvolvidos, são a favor de uma harmonização que permita a constituição de escritórios únicos que dariam patentes válidas para todos, o que a mídia chama de patente global. "Nossa leitura, apesar de isto (escritórios únicos) vir a se transformar numa tendência, é de não aceitar esta idéia, pois a harmonização de patentes envolve demandas muito diferenciadas e isto é preciso estar presente no debate, que queremos que seja mais profundo, menos técnico, e que envolva questões outras como, por exemplo, a da biodiversidade". Para Jaguaribe, a propriedade intelectual não é um fim em si mesma, mas um instrumento que possa propiciar capacitação tecnológica aos países e cada país está num estágio diferente. Há regras comuns, reconhece, de mais de 100 anos. "Hoje existem regras básicas que os membros dos acordos têm que obedecer". Ele destacou que o Brasil está engajado nesse processo, mas acha que ñao se pode ter uma visão tópica, isolada e separar as coisas. "Os Estados Unidos querem trabalhar em alguns temas muito técnicos, como período de graça, novidade, hiato inventivo, enquanto o Brasil quer tratar de não impedir a capacitação de sua indústria, o acesso do seu povo a medicamentos, incluir na discussão a biodiversidade e o conhecimento tradicional. Temos uma série de demandas". Na sua ótica, patentes não podem ser impeditivas de políticas públicas para alguns setores, como o de saúde. Para ele, a reunião que ocorreu no Marrocos teve um critério "seletivo", onde predominavam as pessoas que concordavam com a posição de dividir a discussão, deixando as demandas dos países em desenvolvimento para um outro momento. A Índia comandava o processo de debates e portanto estava praticamente fora das discussões, e o México e Chile, também convidados, têm posições diferentes da do Brasil, destacou. Os países que lançaram a agenda para o desenvolvimento em Genebra foram em sua maioria excluídos do encontro, como Argentina, Egito e África do Sul, denunciou. Enquanto lá estavam Alemanha, França, Inglaterra, Itália, Suiça, União Européia e até o escritório europeu de patentes, além dos EUA.