Título: Tensão será constante sem desligamento da Bolívia
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 16/09/2008, Opinião, p. A12
A recente convulsão social na Bolívia mostra que é insuficiente para o Brasil criar planos de contingência para lidar com a renitente instabilidade política do vizinho. A imaturidade da democracia boliviana, que, na semana passada, parece ter repetido mais uma vez a tradição de flertar com o abismo e recuar ligeiramente em seguida, mostra a necessidade de alternativas ao principal fornecedor de gás natural para a economia brasileira. É de se perguntar se não é hora de criar rapidamente uma estratégia para anular por completo o eventual impacto, na economia brasileira, de um estancamento no fluxo do gasoduto Brasil-Bolívia.
Desde a nacionalização dos hidrocarbonetos, feita de maneira agressiva e propagandística pelo governo Evo Morales em 2006, a Petrobras adotou providências para minimizar a dependência do gás boliviano. Iniciou a construção de instalações para conversão de gás natural liquefeito (GNL), arquivou os planos de ampliação do gasoduto Brasil-Bolívia, reduziu os investimentos em território boliviano ao necessário para manter o fornecimento atual e pôs em prática seus planos para aumentar a extração de gás da Bacia de Santos.
Só essa última providência acrescentou 12 milhões de metros cúbicos diários ao abastecimento do mercado do Sudeste, e deve gerar 30 milhões de metros cúbicos ao dia a partir de 2010, o equivalente ao volume fornecido hoje pela Bolívia. Os terminais de GNL em Pecém e na Baía de Guanabara responderão por mais 21 milhões de metros cúbicos por dia. Mas o governo e a Petrobras vêem como nonsense a idéia de desligar completamente a Bolívia da matriz energética brasileira. Em 2010, prevê-se que o consumo brasileiro de gás - hoje em 60 milhões - chegará a 100 milhões de metros cúbicos diários, que se elevarão para 130 milhões, em 2012.
Os planos da Petrobras para atender a esse consumo não dispensam os 31 milhões de metros cúbicos vendidos a preços competitivos pela Bolívia. Isso apesar de o Planos de Negócios da estatal para 2008 a 2012 prever investimentos de US$ 18 bilhões para o gás natural, incluídos aí o aumento da malha de gasodutos nacional, de 6,5 mil quilômetros para mais de 10 mil em 2010.
Enquanto não for desmentido pela exploração das reservas nas camadas de pré-sal das águas profundíssimas brasileiras, o presidente da Petrobras, José Sérgio Gabrielli continuará repetindo um de seus ditos prediletos: combustível, diz ele, não costuma ser extraído em áreas tranqüilas do mundo. Esse tipo de comentário e as programação da Petrobras indicam que o país, nos próximos anos, continuará dependendo dos vulneráveis dutos bolivianos para compor parte considerável de sua matriz energética. Até porque há um contrato para o fornecimento do gás, que só caducará em 2019.
Essa posição reflete também o fato de que o GNL é ainda uma opção bem mais cara, mais que o dobro do custo do gás boliviano. A sujeição desse combustível ao monopólio da Petrobras impede a redução de preços que viria com maior competição.
Na falta de opções mais baratas e viáveis, o país estará condenado a sustos periódicos com a crônica instabilidade do vizinho andino. E o que os recentes conflitos revelam, de maneira preocupante, é que, mesmo contrariando os próprios interesses, parte da sociedade boliviana está disposta a usar o Brasil e sua dependência do gás como refém em suas disputas internas.
O último conflito, provocado por reivindicações das regiões mais ricas por mais recursos e autonomia, gerou 30 mortos, provocou incalculáveis prejuízos econômicos e aprofundou a divisão secular do país entre os "collas" indígenas do ocidente andino e os "cambas" do rico oriente amazônico-platino.
O Brasil, como vizinho, cliente e força hegemônica regional, tem um papel a desempenhar na crise boliviana. Mas, como apontou em artigo na "Folha de S. Paulo", no último sábado, o embaixador Rubens Ricupero, só se ajuda quem aceita ser ajudado. Enquanto os bolivianos mostrarem mais empenho em aprofundar as fraturas do país do que em emendá-las, o Brasil não pode deixar de buscar cenários que permitam ao país desligar-se das turbulências do agitado vizinho.