Título: Passividade e autocracia na crise americana
Autor: Piva, Luiz Guilherme
Fonte: Gazeta Mercantil, 23/09/2008, Opinião, p. A3

23 de Setembro de 2008 - Ora, a política! A crise americana, que já devorou bancos de investimento, uma seguradora, milhões de crédulos e incautos e reputações, tem recebido análises econômicas e financeiras competentes. Não há nenhum aspecto, nessas dimensões, que esteja ausente dos artigos publicados no último período. Tampouco faltam pontos de vista, escolas, correntes e teorias. Podemos adotar alguma, ou partes de algumas, enfatizar processos que nos interessam mais, pinçar uma meada e esticá-la fora do novelo desgrenhado (se o que interessa é o enredo) ou recortar um contorno numa tela de garranchos (se o que interessa é o fato) e pronto. Podemos então entender, explicar e escrever artigos de economia e finanças sobre a crise americana. Mas espalhe esses artigos no chão. Empilhe-os. Ponha-os na parede. Separe-os por qualquer critério. Cruze-os, derive-os, securitize-os. Olhe-os contra o sol, com lupa, com teodolito, luneta. Adentre-os (com a linha esticada do novelo para se guiar no labirinto) atrás do minotauro.Vire-os do avesso.Você não verá nada - desconsidere os milhões de crédulos e incautos - além de economia e finanças. Aliás, mais finanças do que economia. Papéis, valores, títulos, crédito, bolsas, bancos, opções, hedges e derivativos ocupam tudo. São essas as únicas variáveis analíticas. Não se encontram atores, classes, estruturas e interesses. Nada de partidos, instituições, grupos, associações. Isso na maior democracia do mundo e em meio à complexa e acirrada eleição presidencial de novembro. Ora, a política! E haverá alguma leitura política da crise? Da minha parte, só me arrisco a identificar presenças e ausências de alguns aspectos. No futuro, haverá os que acenderão suas lanternas macroestruturantes para iluminar o passado. Eu só disponho de flashes. Um é a passividade das instituições políticas e da sociedade. O outro é o poder inquestionável da tecnocracia.Certamente um se relaciona com o outro. Mas me atenho a cada um. Quanto à passividade, chama a atenção a do Congresso, dos partidos, das organizações sociais e da população. Mesmo sendo maioria na Câmara e podendo eleger o presidente, o Partido Democrata, de oposição, não se mexe. Que questionamento apresentou às autoridades, ao governo, ao presidente? Tentou uma Comissão de Inquérito, ou processo de crime de responsabilidade, ou ao menos fóruns de discussão das medidas que estão sendo adotadas? Mesmo quando ainda não eclodira a crise, o Congresso chamou o governo para analisar os riscos da euforia financeira? Está obstruindo as votações para pressionar negociações sobre as saídas para a crise? Pediu uma reunião de líderes? Propôs algum pacto de transição? Forçou mudanças no ministério, nas agências ou nas lideranças do governo republicano? As organizações sociais - de moradores, de trabalhadores, de empresários, de banqueiros, de desempregados, de mutuários - se manifestaram? Promoveram algum boicote ou protesto? Fizeram greves? Exigiram direitos, regras, garantias? Tentaram mudar o rumo das coisas ou amenizar os efeitos do desastre? Panelaços? Buzinaços? "Lockouts"? Jornada de lutas, congressos, seminários, pauta de conversações? Até onde vejo, nada. A maior parte dos ataques e defesas de conteúdo relativamente político não está nas instituições políticas nem nas organizações sociais, nem mesmo nas falas das campanhas democrata e republicana. Está na imprensa. Ou melhor, na mídia: são analistas, especialistas, acadêmicos e palpiteiros quem, vez ou outra, discutem conteúdos, responsabilidades e impactos. Mas sem qualquer repercussão política. Quanto à tecnocracia autocrática, o Federal Reserve Board (Fed) e o Tesouro fazem o que querem, à hora que querem. Seja na aceleração da euforia, seja na freada. Emitem papéis, liberam crédito, autorizam a abertura e a expansão de bancos e financeiras, garantem a multiplicação de valores sem limite nem perguntas. Depois fecham bancos, assumem dívidas, adquirem empresas, liberam auxílios, tomam decisões dramáticas com a singeleza e o poder de quem afixa éditos na porta dos castelos. Ou nos sites da internet. A democracia presume afirmação, participação, voz. Não somente aceitação ou opção por sair do jogo. Ou, o que é quase o mesmo, por assisti-lo pela mídia. A crise, a meu ver, expõe mais a fragilidade da democracia do que a do capitalismo nos EUA. kicker: A mídia critica e dá palpites, mas não há protestos por parte da sociedade (Gazeta Mercantil/Caderno A - Pág. 3) LUIZ GUILHERME PIVA* - Diretor técnico da LCA Consultores. Próximo artigo do autor em 14 de outubro)