Título: Endividados além da conta
Autor: Branco, Mariana
Fonte: Correio Braziliense, 12/03/2011, Cidades, p. 31

O servidor público do Distrito Federal está endividado. Metade dos 112 mil funcionários públicos locais tem crédito consignado contratado atualmente. Dentro desse universo de 56 mil pessoas, muitas atingiram um grau de endividamento problemático. São trabalhadores que gozam de estabilidade e bons salários, mas, mesmo assim, perderam o controle das finanças e, hoje, têm que recorrer a amigos e parentes para fazer face a despesas com as quais anteriormente arcavam com facilidade.

É o caso da técnica em enfermagem aposentada cuja renda é de R$ 5 mil, mas que não pode quitar um aluguel de R$ 1 mil. Ou de uma secretária do Hospital de Base do DF (HBDF) que ganha R$ 3,2 mil, mas deve R$ 120.770 ¿ o equivalente a três anos de salário. A situação é tão séria que, há 20 dias, o GDF determinou a renegociação dos débitos nos casos mais graves. O BRB alongou de 60 para 90 meses o prazo máximo de parcelamento, e tem a orientação de reduzir ao menor patamar possível o valor das prestações.

As histórias são locais, mas elas se repetem por todo o país. Os servidores públicos são os que se veem envolvidos em situações do tipo com mais frequência. Afinal, como o desconto é em folha, o pagamento é garantido. Outro fator importante é que a possibilidade de um servidor perder o emprego é extremamente remota. Isso faz com que bancos e financeiras liberem mais dinheiro, com menos burocracia, para essa parcela da população.

Bola da neve Em geral, o endividamento começa com o crédito consignado, modalidade que tem os juros mais baixos do mercado: uma média de 27,1% ao ano, contra 41,9% do crédito pessoal e 165,1% do cheque especial. Por segurança, só 30% da renda podem ser comprometidos. No entanto, antecipações de salário, de Imposto de Renda e de férias são outras vantagens que os bancos oferecem, sendo que servidores costumam ter acesso a elas com mais facilidade do o trabalhador comum. Mais uma vez, há um limite para o teto da dívida. A exemplo do que ocorre com o crédito consignado, o somatório dos demais débitos com desconto em conta-corrente não pode ultrapassar 30% da renda do tomador de crédito. Na teoria, um máximo de 52% do salário líquido original deveria ficar comprometido. Na prática, entretanto, os juros podem fazer com que o débito ultrapasse esse patamar.

Outro fator a ser levado em conta é que esses empréstimos não são a única dívida do tomador de crédito, que frequentemente está preso a outros compromissos. O cheque especial, também debitado automaticamente da conta, está entre eles, bem como o cartão de crédito. Para completar, é comum que, quando o devedor chega a um estágio em que já deve além do que pode pagar, ele saia em busca de dinheiro proveniente de toda e qualquer fonte disponível. Pode ser um banco diferente daquele onde é depositado seu salário, uma financeira que libera empréstimos sem fazer muitas exigências, associações, cooperativas e até agiotas. A essa altura, o endividado está pagando juros sobre juros. E, embora seja difícil acreditar, em alguns anos, uma dívida de R$ 9 mil pode, sim, saltar facilmente para R$ 90 mil.

Cadastro Em maio do ano passado, o Ministério do Planejamento adotou uma política para evitar a utilização abusiva, por servidores públicos federais, do crédito consignado e de outras modalidades com desconto em conta-corrente. Foi criado um sistema de cadastro, que gerou um código numérico para cada funcionário. Um convênio foi firmado entre o órgão e várias instituições financeiras, que tiveram acesso aos números. Sempre que um servidor tenta obter crédito, a senha é lançada no sistema e é possível detectar se o funcionário já tem o limite de endividamento comprometido com outras instituições bancárias.

70% do salário suprimido A servidora pública Elied Barbosa, 48 anos, trabalha há 20 como secretária do Hospital de Base. A contratação de crédito consignado, somada à antecipação de Imposto de Renda, férias e 13°, fizeram com que, em agosto de 2009, a renda da funcionária ficasse reduzida a 30% do salário original. Ela ainda fez uso do limite do cheque especial, do cartão de crédito e assinou uma nota promissória, o que agravou o caso.

¿No começo, eu precisava. Depois, você se empolga com a facilidade do crédito. No fim, você fica sem pagamento e ainda arca com juros. Então, você começa a fazer um rombo para cobrir os outros¿, afirma ela. A supressão de 70% do salário líquido de R$ 3,2 mil da servidora não foi a mais dramática. ¿Durou até novembro do ano passado. Eu ia renegociando e pagando minhas contas com a ajuda de amigos e dos meus filhos. Então, a promissória venceu. Não consegui renegociar e fiquei com o salário zerado. Vivi quatro meses assim¿, conta Elied, cujos apuros começaram a se resolver há duas semanas. Ela foi uma das primeiras servidoras do GDF a ter o débito renegociado pelo BRB, após o entendimento entre o banco e o governo. ¿Vou pagar 90 parcelas de R$ 1,2 mil. Finalmente vou ter meu salário para mim de novo¿, comemora.

A secretária faz parte de um grupo de funcionários públicos que entraram em contato com o gabinete do deputado distrital Chico Vigilante (PT). O parlamentar participou do diálogo entre o banco público e o GDF que resultou na renegociação das dívidas.

A técnica em enfermagem aposentada Maria da Glória dos Santos Xavier, 48 anos, anseia pelo momento em que seu caso será revisto pelo banco. ¿Já me reuni com o BRB e espero uma resposta¿, conta. Maria da Glória começou a se endividar em 2008, quando tomou uma série de empréstimos para ajudar familiares com problemas financeiros. ¿Naquele ano, peguei meu primeiro consignado. Também usei o limite do cheque especial, pedi adiantamento do salário, passei cartão de crédito. Peguei até dinheiro fora com agiota¿, relata ela, cuja dívida atingiu R$ 50 mil. ¿Eu ganho R$ 5 mil, mas tinha mês que não podia pagar o aluguel¿, lamenta a aposentada.

O auxiliar técnico Jânio Pereira de Araújo, 48 anos, que trabalha com Elied Barbosa no HBDF, também aguarda com ansiedade a renegociação de seu débito. Com um salário líquido de pouco mais de R$ 2 mil, nos últimos dois anos ele vem recebendo uma média de R$ 400 ao mês. ¿Peguei crédito consignado e outras modalidades de empréstimo do BRB. É humilhante. Tenho vivido com a ajuda de parentes¿, conta. (MB)

Sem educação econômica O tema da utilização consciente do crédito é espinhoso. Se de um lado os consumidores se dizem seduzidos pelas propostas de dinheiro fácil das instituições financeiras, de outro é discurso corrente entre especialistas que a população do Brasil carece de educação para a vida econômica. ¿Há, da parte do sistema financeiro, uma falha. Como ele libera um crédito com o qual o consumidor naquela faixa de renda não pode arcar? No entanto, a pessoa toma o empréstimo porque quer. O banco não pode ser responsabilizado pelo descontrole e pela falta de informação do cliente¿, opina Miguel Oliveira, economista e vice-presidente da Associação Nacional dos Executivos de Finanças (Anefac).

O advogado especialista em direito do consumidor José Geraldo Tardin, presidente do Instituto Brasileiro de Estudo e Defesa das Relações de Consumo (Ibedec), defende outro ponto de vista. Para ele, o cliente é a parte mais frágil nas relações com bancos e financeiras. Ele explica que o Código de Defesa do Consumidor (CDC) presume que o cliente é vulnerável e age de boa fé, mesmo que ele tome crédito além da capacidade de pagar. Entretanto, como o superendividamento tem se tornado cada vez mais comum no país, entidades como o Ibedec querem que a contratação de empréstimos passe a ter prazo de sete dias para arrependimento, a exemplo do que ocorre com as compras de produtos.

O secretário de Administração do Distrito Federal, Denilson Bento da Costa, diz que a renegociação não será suficiente para erradicar o problema das dívidas dos servidores, e que é necessário um trabalho de conscientização. ¿O servidor do GDF está endividado de uma maneira que é preocupante¿, afirma. De acordo com ele, a Secretaria de Administração está em entendimento com o BRB para realizar um trabalho informativo sobre o uso do crédito. É intenção da pasta, ainda, restabelecer as funções da Escola de Governo, instância que faz o treinamento de novos servidores, e criar programas de orientação sobre crédito no âmbito dela.

Leanne Cardoso Mundim, diretora de crédito do BRB, afirma que a política de crédito do banco é ¿pautada nos princípios de consumo consciente¿. Segundo ela, a maioria dos casos problemáticos de endividamento de servidores dizem respeito à tomada de crédito em outras instituições que não o BRB, como associações e cooperativas. ¿Com isso, o comprometimento (da renda) aumenta consideravelmente.¿ (MB)

Proteja-se » Não comprometa sua renda sem necessidade. Avalie se de fato é necessário tomar um empréstimo. O crédito consignado é aconselhado, por exemplo, para quitar débitos com juros maiores, como o cheque especial e o cartão de crédito.

» Saiba exatamente quanto você vai pagar. O valor total financiado, as taxas de juros, todos os acréscimos e o número de prestações.

» Fuja da venda casada. Ao fazer um empréstimo ou financiamento, você não é obrigado a aceitar outros serviços oferecidos pela financeira ou banco, tais como seguros e títulos de capitalização.

» Mesmo tendo assinado o contrato, nem tudo está perdido. Se de alguma forma você se sentiu prejudicado ou violado nos seus direitos, reclame perante os órgãos de defesa do consumidor. O Código de Defesa do Consumidor prevê uma série de direitos para sua proteção. Se a dívida fugiu do seu controle, procure o banco para negociar. Em geral, há abertura a acordos, já que em muitos casos a renegociação é a única forma de receber o valor do débito.

» Na maioria das vezes, as condições de renegociações oferecidas pelo banco são duras. Em alguns casos, a instituição prefere facilitar para o devedor a esperar o desfecho de um longo processo na Justiça. Se não houver entendimento possível com o credor, a solução é tentar quitar o débito pela via judicial.