Título: Algumas reflexões sobre a crise econômica
Autor: Maciel, Everardo
Fonte: Gazeta Mercantil, 25/09/2008, Opinião, p. A3

25 de Setembro de 2008 - Ágaton, poeta grego citado por Aristóteles na "Poética", afirmava que "é muito provável que o improvável aconteça". Antecipava, pela via literária, o que viria ser o cenário econômico mais típico dos dias de hoje - a era das incertezas, tema de memorável livro de John Kenneth Galbraith. O que está ocorrendo com a economia americana ninguém foi capaz de prever, ao menos na dimensão que parece ter. A crise expõe uma combinação inimaginável de incúria, desídia, negligência, ganância e má-fé, sob a égide do incompetente e irresponsável governo Bush. O que antes poderia ser visto como problemas episódicos, circunscritos ao mercado acionário, e descritos como "exuberância irracional" por Alan Greenspan, então presidente do Federal Reserve (Fed), o banco central americano, percebe-se agora que era uma demonstração de completa alienação dos órgãos responsáveis pela supervisão das instituições financeiras e do mercado acionário nos Estados Unidos. Primeiro, foram as espantosas fraudes detectadas nos balanços corporativos, com a conivência das empresas de auditorias, o que levou a uma completa reformulação da legislação aplicável, consubstanciada na vigente Lei Sarbannes/Oxley; agora, é a evidência de que a política de crédito, associada a derivativos negociados sem regras prudenciais, produz estragos cujos efeitos alcançaram dimensão global e duração imprevisível. As medidas que se encontram em discussão no Congresso americano parecem negar peremptoriamente regras abonadas por doutrinas acadêmicas que perfilham a supremacia completa do livre mercado, rechaçando qualquer possibilidade regulatória do Estado. Desde os gregos se sabe que o dogmatismo, em qualquer campo da atividade humana, oblitera a percepção da realidade e gera soluções desastradas. Conflitos de interesse, não raro conflitos de razão, permeiam continuadamente a atividade econômica e reclamam a ação mediadora das instituições públicas. É necessário que o Estado seja forte na regulação, para que possa ser fraco na intervenção. Nesse contexto de imprevisibilidade da economia internacional, é inútil praguejar contra malfeitorias praticadas por terceiros, estrangeiros ou não. Gabolices e diatribes não detêm crises. Temos sido privilegiados pela preservação de uma política econômica centrada na estabilidade e regada por um invejável ciclo de crescimento econômico mundial. O vento da bonança, contudo, deixou de soprar, antecipando a calmaria. Não adianta desconhecer esses sinais. Atitudes temerárias constituem caso flagrante de irresponsabilidade. Todos bendiziam o crédito imobiliário nos Estados Unidos. Deu no que deu. Alguém pode imaginar créditos para financiamento de automóveis e motocicletas, como ocorre no Brasil, para amortização em 84 meses? Muito antes do prazo de liquidação do financiamento o valor remanescente do bem é inferior ao saldo do empréstimo. O crédito consignado nos proventos dos aposentados é excelente para as instituições financeiras. Nem sempre o é para o aposentado que pode demandar recursos para enfrentar situações fortuitas, sem ter condições para gerar renda adicional. Será que já nos esquecemos do BNH e da farra dos financiamentos habitacionais? Melhor dizendo, será que já nos esquecemos dos chamados "esqueletos" administrados a duras custas pela anterior administração federal? No final, a conta é sempre paga pelos contribuintes. As instituições financeiras brasileiras estão robustas porque são alimentadas pelos bem remunerados títulos da dívida pública e porque foram saneadas pelo Proer, demonizado à época por políticos da oposição. Medidas análogas foram adotadas, pouco tempo depois, pelo Japão e, de certo modo, são agora tentadas nos Estados Unidos. As despesas governamentais não podem continuar crescendo na proporção observada nos últimos anos. Os recentes aumentos de pessoal não se justificam e demandam esforço fiscal que há muito já ultrapassou o limite do razoável. Tal quadro aumenta a vulnerabilidade do País a choques externos, cujo enfrentamento impõe sacrifícios para todos. É quase inevitável que surjam limitações na disponibilidade de crédito, mormente naquele destinado ao financiamento agrícola. Os supridores desse crédito, geralmente os produtores de insumos e fertilizantes, ficarão receosos ante a instabilidade nos preços das commodities, em um cenário de bruscas oscilações nos preços dos combustíveis e desconfianças em relação ao dólar. Facilidades no crédito ao consumidor e programas assistenciais que beneficiam em caráter permanente pessoas aptas ao trabalho podem produzir ilusões passageiras e auto-engano coletivo. Geralmente resultam em êxitos eleitorais avassaladores, como na época do "milagre econômico" ou na euforia do cruzado. Não são permanentes, todavia. Como dizia Marx, "tudo que é sólido desmancha no ar". O País precisa encarar com prudência e seriedade a crise internacional. Não dá para descer aos infernos, sem a imunidade de Dante. kicker: É necessário um Estado forte na regulação para ser fraco na intervenção (Gazeta Mercantil/Caderno A - Pág. 3) EVERARDO MACIEL* - Consultor tributário e ex-secretário da Receita Federal. Próximo artigo do autor em 16 de outubro)