Título: Ultimato a Kadafi
Autor: Craveiro, Rodrigo
Fonte: Correio Braziliense, 09/03/2011, Mundo, p. 14

Oposição avisa que desistirá de processar o ditador, caso ele deixe o poder e o país até sexta-feira e interrompa os bombardeios. Trípoli reage com ironia, desafia a comunidade internacional e amplia ataques aéreos a cidades petrolíferas

Enquanto as forças de Muamar Kadafi aumentavam o assédio contra as cidades de Zawiyah ¿ polo petrolífero situado a apenas 50km de Trípoli ¿ e Ras Lanuf, o ditador líbio se apressava em ridicularizar a notícia sobre um ultimato dado pelos opositores. Mustafa Abdel Jalil, chefe do recém-criado Conselho Nacional Transitório (CNT), deu ontem um prazo até sexta-feira para Kadafi abandonar o país. ¿Se ele deixar a Líbia imediatamente, nas próximas 72 horas, e interromper os bombardeios, nós, como líbios, desistiremos de persegui-lo por seus crimes¿, declarou à rede de TV Al-Jazeera. A reação de Trípoli envolveu um misto de desdém e incredulidade. ¿É irritante ter que comentar uma bobagem desse tipo¿, afirmou à agência France-Presse uma fonte governamental, sob a condição de anonimato. No início da manhã de ontem (hora de Brasília), a emissora CNN chegou a divulgar que Kadafi já estaria negociando sua renúncia. No entanto, integrantes da oposição revelaram que um representante do mandatário propôs a abertura de um diálogo, que teria sido rejeitado imediatamente pelo próprio CNT. Até o fechamento desta edição, não estava clara a existência de um debate político entre o governo Kadafi e a insurgência.

Uma coisa começa a ficar evidente: o cerco exercido pelas forças de Trípoli aos rebeldes tem conseguido cortar as linhas de suprimentos e enfraquecer o movimento opositor. Kadafi também parece dar poucos ouvidos à comunidade internacional. Talvez prevendo uma vitória iminente, o ditador intensificou os ataques contra Zawiyah, lançando mão de 50 tanques, 120 picapes dotadas de artilharia e caças. ¿Eu não sei quantos estão mortos, mas eles reduziram Zawiyah a cinzas¿, afirmou um morador da cidade à emissora britânica BBC. No Cairo, onde exerce a função de porta-voz dos rebeldes, Murad Hemayna relatou que familiares foram assassinados e outros ficaram feridos. ¿Em cada esquina, há pessoas que atiram. Kadafi quer tomar Zawiyah antes de quarta-feira (hoje). A comunidade internacional precisa fazer algo¿, disse Murad, um ex-alto funcionário do Ministério das Relações Exteriores da Líbia que se demitiu após o início da ofensiva contra os civis.

Em Ras Lanuf, o médico Abdo, 59 anos, descreveu a situação como ¿muito tensa¿ e lamentou a morte de um amigo. ¿A Força Aérea o matou e dizimou sua família, que viajava de Bin Jawad para cá¿, contou ao Correio, por telefone. Segundo ele, os moradores da cidade estão isolados. ¿Ninguém pode ir para o oeste. Seria o mesmo que morrer¿, comentou, com a condição de não divulgar seu sobrenome. Abdo revelou que o hospital local tem capacidade para 62 leitos e apenas duas mesas cirúrgicas. ¿Há mais de 100 feridos. É difícil lidar com esses casos, algumas pessoas foram completamente esmagadas, levaram tiros na cabeça e no peito, ou chegaram destroçadas pelas bombas¿, desabafou. O médico afirmou que cerca de 100 rebeldes ainda controlam Ras Lanouf, enquanto outros marchavam para Bin Jawad, onde se esperava um confronto direto com as tropas de Kadafi. Segundo ele, as forças governamentais bombardearam ontem duas casas. Desde 17 de fevereiro, 22 líbios morreram na cidade e mais de 200 ficaram feridos.

Na cidade de Misrata, o engenheiro Ahmed, 47 anos, viveu ontem um dia atípico, em relação ao fim de semana de bombardeios. ¿Não tivemos qualquer ataque, foi uma terça-feira calma, mas as pessoas daqui estão muito amedrontadas, por causa dos sequestros noturnos¿, contou à reportagem, também por telefone. Ele admitiu que 200 pessoas foram levadas de suas casas, em 20 dias de levante. Ahmed Ele duvida que Kadafi levará a sério o ultimato do Conselho Nacional Transitório. ¿Não faz parte do perfil dele. Não acredito que ele cederá à comunidade internacional¿, aposta.

Diplomacia A ofensiva diplomática seguiu ontem um ritmo diretamente proporcional aos ataques de Kadafi. Para tentar pôr um fim à matança de civis, o presidente norte-americano, Barack Obama, e o premiê britânico, David Cameron, conversaram por telefone sobre várias opções para lidar com a crise na Líbia. Entre as possíveis medidas, consideram-se uma vigilância rigorosa, assistência humanitária, aplicação do embargo de armas e uma zona de exclusão aérea. A secretária de Estado dos EUA, Hillary Clinton, alertou que qualquer decisão de restringir voos na Líbia deve ser adotada pela Organização das Nações Unidas (ONU) e não pela Casa Branca. ¿Creio ser muito importante que não seja um esforço liderado pelos Estados Unidos, porque isso vem do próprio povo líbio¿, declarou.

Um passeio no hotel O ditador líbio Muamar Kadafi chegou ao Hotel Rixos, em Trípoli, pouco depois das 18h (23h em Brasília) de ontem. Vestido com uma túnica negra e um turbante de cor ocre, o coronel passou entre os jornalistas reunidos no hall do prédio. Levantou os braços e cerrou os punhos, em sinal de vitória. Com a excentricidade de sempre, Kadafi deixou o hotel do mesmo modo que entrou: calado. No início da noite, a imprensa internacional aguardava uma entrevista coletiva com o ditador e microblogueiros líbios especulavam sobre uma possível renúncia. Kadafi frustrou a todos.

Convulsão árabe Polícia mata três

A rede de TV Al-Jazeera divulgou ontem que três detentos morreram durante um protesto na Prisão Central de Sanaa, capital do Iêmen. Os prisioneiros atearam fogo a colchões e cobertores, antes de ocuparem o principal pátio do estabelecimento. A manifestação tinha por objetivo exigir a renúncia do presidente Ali Abdullah Saleh. Os escritórios das autoridades penintenciárias foram queimados pelos prisioneiros, contidos por gás lacrimogêneo e tiros disparados pelas tropas. Outros protestos ocorreram na Universidade de Sanaa, o epicentro da revolta contra o mandatário (foto).

ARÁBIA SAUDITA Pela livre expressão

A organização não governamental Anistia Internacional ordenou ontem à Arábia Saudita interromper a ¿restrição ultrajante¿ aos protestos pacíficos no reino. ¿As autoridades sauditas têm o dever de garantir a liberdade de reunião e estão obrigadas a permitir manifestações não violentas, de acordo com o direito internacional¿, afirmou à CNN Philip Luther, vice-diretor da ONG para o Programa do Norte da África e do Oriente Médio. A entidade denunciou que 24 pessoas foram presas na cidade de Qatif (leste), na semana passada, enquanto reclamavam da ¿detenção prolongada¿ de nove xiitas mantidos sob cárcere e sem julgamento desde 1997.

IRÃ Protesto contido

Forças de segurança iranianas usaram ontem gás lacrimogêneo para dispersar opositores reunidos perto da Praça da Revolução. De acordo com a emissora norte-americana CNN, o movimento do ex-presidenciável Mir Hossein Moussavi convocou os protestos para marcar o Dia Internacional da Mulher. Centenas de integrantes da milícia Basij patrulharam o local, além de vigiarem as principais avenidas de Teerã. O portal Kaleme.com, site oficial da oposição, revelou que Moussavi e sua mulher, Zahra Rahnevard, estão em sua residência e não na prisão. ¿Depois da investigação realizada pelo Kaleme nos últimos dias, é evidente que a senhora Rahnevard e o senhor Moussavi estão em seu domicílio e, por este meio, corrigimos a informação sobre sua transferência para a prisão e apresentamos nossas desculpas¿, afirma o comunicado do portal. O apoio aos opositores do presidente Mahmud Ahmadinejad custou ontem ao ex-mandatário reformista Akbar Hashemi Rafsanjani, o comando da influente Assembleia de Especialistas ¿ posto crucial da estrutura de poder da República Islâmica.