Título: Laicidade e ensino religioso
Autor: Diniz, Débora
Fonte: Correio Braziliense, 11/03/2011, Opinião, p. 15

Debora Diniz Professora da Universidade de Brasília, pesquisadora da Anis %u2014 Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero e coautora do livro Laicidade e Ensino Religioso no Brasil ¿Alguns críticos afirmam que é problemático declarar a homossexualidade como completamente normal. Primeiro, porque muitos homossexuais revelam conflitos profundos, o que mostra que eles mesmos não se aceitam como são. Segundo, porque se fosse normal então seria a regra... Terceiro, se isso se tornasse a regra da conduta humana, como a humanidade se perpetuaria?¿ Essas são afirmações de um dos livros didáticos disponíveis no mercado editorial brasileiro voltado para o ensino religioso. Que a diversidade sexual é um tema desafiante para muitas religiões, isso não é novidade, pois publicamente lideranças religiosas qualificam a homossexualidade como ¿grave perversão¿. A inquietação está no fato de que religião não é apenas uma expressão individual de fé e pertencimento a determinada comunidade religiosa, mas também uma disciplina obrigatória no ciclo fundamental de ensino das escolas públicas brasileiras.

A Constituição brasileira determina que a religião deve fazer parte da formação básica comum, por isso sua presença obrigatória nas escolas. Mas não se sabe ao certo como e quem deve ensinar religião nas escolas. Cada estudante deve informar se deseja frequentar as aulas de ensino religioso, pois a matrícula é facultativa. Contudo, não há ainda estudos sistemáticos e nacionais realizados nas escolas públicas brasileiras que mostrem se o caráter facultativo é respeitado ou mesmo se a grade de ensino oferece condições para que os estudantes tenham alternativas às aulas de ensino religioso. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação, de 1997, ao regulamentar o ensino religioso, delegou aos estados os critérios de habilitação dos professores e a definição do conteúdo do ensino. O resultado é uma diversidade de regulamentações, com espaço para o proselitismo religioso nas escolas públicas.

A educação religiosa pode ser parte de um ritual de iniciação individual a uma determinada comunidade. Ela se caracteriza pela identidade proselitista, pois, em geral, ignora outras crenças e se define como a única verdadeira para uma série de questões relacionadas ao bem-viver. A educação religiosa é um momento decisivo para a conversão de um indivíduo a um grupo. A escola pública não tem por objetivo converter crianças e adolescentes para determinados valores religiosos, tampouco para a sua rejeição. Por isso, ensino religioso não pode se confundir com educação religiosa. O ensino religioso deve reconhecer a pluralidade de crenças da sociedade brasileira e submeter-se ao pacto político que separa a confessionalidade das instituições públicas. É exatamente nesse encontro inusitado entre a laicidade do Estado brasileiro e o ensino religioso nas escolas públicas que os desafios éticos são crescentes para a regulamentação do ensino religioso nas escolas públicas.

Apesar da constitucionalidade do ensino religioso no Brasil, há argumentos fortes que contestam sua legitimidade em um país laico. O mais importante deles é o de que, ao introduzir religião no espaço público da escola, o Estado assumiria que a religiosidade é necessária para a promoção da vida boa e da cidadania. E mais grave do que esse contestável julgamento ético sobre o bem-viver é a abertura da escola para disputas entre religiões, com a consequente hegemonia das religiões cristãs e o silenciamento de religiões minoritárias e centrais à formação da sociedade brasileira, como as afro-brasileiras e indígenas.

O ensino religioso nas escolas públicas deve respeitar o dispositivo da laicidade como fundamento para a convivência solidária entre cidadãos e grupos que professem diferentes crenças ou que não professem qualquer confissão religiosa. As religiões não podem ser consideradas um fenômeno social e de conhecimento alheio aos processos de pactuação política, portanto, livres do poder normativo do Estado. O ensino religioso nas escolas públicas é uma questão que interessa não apenas às comunidades religiosas, mas principalmente ao Estado para a promoção da cidadania.