Título: Crise vai levar meses para ser resolvida
Autor: Monteiro, Viviane
Fonte: Gazeta Mercantil, 20/10/2008, Finanças, p. B3

Brasília, 20 de Outubro de 2008 - O ex-ministro da Fazenda e sócio da Tendências Consultoria, Maílson da Nóbrega, afirma que as medidas que têm sido adotadas pelo Banco Central são corretas para o enfrentamento da crise financeira internacional. No entanto, sugere ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva e ao Ministério da Fazenda, que parem de comentar os assuntos técnicos do BC, pois podem cometer erros conceituais graves. Lula ameaçou retomar o compulsório e a Fazenda estaria dando informações sobre o limite de intervenção do BC no mercado de câmbio. Para ele, o governo adotou "uma estratégia politicamente muito arriscada", ao querer minimizar o impacto da crise. "O governo não pode pintar um mar de rosas, absolutamente, fora da realidade".

Maílson diz acreditar que a Fazenda deveria criar um pacote de medidas estruturais e contribuir com o BC no enfrentamento da crise. Entre as medidas, ele sugere o aumento da meta do superávit primário entre 0,5 ponto percentual e 1 ponto percentual. A crise, diz ele, vai desacelerar o crescimento da economia brasileira e aumentar a taxa de desemprego.

Gazeta Mercantil - Qual a sua avaliação sobre as medidas adotadas até agora pelo Banco Central para enfrentar a crise financeira internacional?

O BC está agindo corretamente para suprir a falta de liquidez do sistema financeiro do Brasil, estabelecendo a liberação de compulsórios, acompanhando a tendência das ações adotadas em outros países. As carteiras dos bancos médios já começaram a ser vendidas a bancos maiores, um dos objetivos do BC.

Gazeta Mercantil - Existe alguma previsão do volume de dólares para melhorar a liquidez desse mercado?

Existe um limite que seria a substituição de linhas de crédito de comércio exterior que foram suspensas. Mas certamente não precisa atingir esse limite. Deve chegar somente até o mínimo de liquidez do mercado cambial. Dificilmente o BC teria um limite para intervenção no mercado, como já chegou a ser anunciado pelo Ministério da Fazenda, de US$ 10 bilhões. Isso seria uma estupidez, porque ninguém vai à batalha informando quanto tem de munição. Anunciar o limite de intervenção no mercado de câmbio abre espaço para o ataque especulativo, pois as apostas do mercado passariam a focar esse limite do BC, o que estimularia a disparada do dólar. Mas, felizmente, o BC já desmentiu essa informação (do Ministério da Fazenda). E o BC tem bala na agulha para enfrentar isso, pois são mais de U$ 200 bilhões de reservas internacionais. É um colchão suficiente para devolver a calma ao mercado cambial.

Gazeta Mercantil - O presidente Lula tem afirmado que os bancos brasileiros estariam segurando o dinheiro dos compulsórios liberado pelo BC. Assim, as medidas não estariam causando o efeito esperado na liquidez do sistema financeiro. É isso mesmo?

Com todo respeito ao presidente Lula, ele deveria parar de comentar isso. Está cometendo erros conceituais graves. Ele está fazendo uma confusão dos diabos. Foi importante o presidente Lula ter apoiado as medidas do BC para devolver a estabilidade ao mercado financeiro. Se o presidente Lula continuar a emitir opiniões pessoais sobre a crise e avançar nos conceitos equivocados das medidas do BC ele pode criar um ambiente de expectativas negativas no mercado. Essas são informações que precisam ser reservadas às autoridades monetárias. Nem o ministro da Fazenda (Guido Mantega), nem o presidente Lula deveriam comentar esses assuntos técnicos.

Gazeta Mercantil - Algumas medidas já foram adotadas no Brasil e no exterior. Por que as medidas do BC ainda não surtiram efeito no mercado e quanto tempo deve levar para esse efeito acontecer?

Essa é uma resposta que vale um milhão de dólares. Ninguém saberia dizer isso. Porque se trata de uma crise de confiança financeira globalizada e só se resolve quando as razões que a provocaram desaparecem. Essa crise vai levar uns meses para ser resolvida. Até que os governos do EUA e da Europa restaurem a confiança. No caso do Brasil, o Banco Central está adotando os instrumentos que dispõe para evitar que a crise de liquidez dos bancos evolua para uma crise de insolvência, o que seria muito complicado. E isso tem tido o apoio do presidente Lula, através da aprovação da Medida Provisória.

Gazeta Mercantil - As medidas estão sendo anunciadas a conta-gotas?

O BC tem agido com muita competência no enfrentamento dessa crise. Provavelmente, a demora na divulgação das medidas seja pela necessidade de adoção dos cuidados necessários para que elas não saiam de maneira equivocada e, futuramente, não criem problemas aos bancos e ao próprio BC. Por mais importantes que sejam as medidas elas precisam ter o mínimo de regras, de parâmetros característicos do setor público, sobretudo do Brasil. Em crises passadas, algumas medidas adotadas pelo BC foram objetos de processos criminais movidos pelo Ministério Publico, sem nenhuma razão. Isso decorre da profunda desinformação que caracteriza a ação do Ministério Público na questão financeira.

Gazeta Mercantil - Mas a demora pode trazer conseqüências futuras?

Essa demora é normal. Nos Estados Unidos, o pacote de U$ 700 bilhões foi aprovado há mais de uma semana e ainda estão trabalhando em cima dele, na questão de legislação. Porém, crises anteriores têm ensinado que quanto maior é a demora da atuação das autoridades maior é o estrago. Um exemplo disso é a depressão dos anos 30, que se agravou porque o governo demorou a agir. A crise começou no início dos anos 30 e as primeiras medidas de socorro vieram três anos depois, em 1933. Isso pode se repetir. Nesta crise as medidas emergentes foram adotadas apenas um ano depois do seu início. O Banco Central e a Secretaria do Tesouro Nacional dos EUA negam, mas há percepção de analistas de que eles teriam errado em ter deixado o Lehman Brothers quebrar. Isso é considerado o estopim dessa atual crise de confiança do sistema bancário.

Gazeta Mercantil - O BC deveria comprar diretamente as carteiras de crédito dos pequenos bancos em vez de atribuir essa responsabilidade aos bancos maiores?

O BC vai atuar em duas frentes. Ele pode liberar compulsórios para os bancos maiores adquirem as carteiras de crédito dos menores. E ele próprio poderá adquirir essas carteiras. A autoridade monetária divulgou as normas para comprar carteiras desses bancos desde que sejam classificados de baixo risco.

Gazeta Mercantil - A produção da safra agrícola 2008/09 está ameaçada? Os recursos de R$ 5,5 bilhões anunciados na semana passada pelo BC são suficientes para atender ao campo?

Dificilmente teremos queda da produção no próximo ano. A rigor, a safra 2008/09 já foi formada. O que os agricultores precisam, neste momento, é de recursos de capital de giro, para continuar os tratos culturais. E a liberação do dinheiro de compulsório para o crédito rural foi uma medida correta.

Gazeta Mercantil - A equipe do Ministério da Fazenda já deveria ter anunciado alguma medida ou deve deixar o BC sozinho no comando do enfrentamento dessa crise?

Ainda bem que ele (Ministério da Fazenda) não anunciou nenhuma. Porque, pelo que se vazou do ministério, eles estão pensando em adotar medidas equivocadas. Por exemplo, diminuir a meta do superávit primário para neutralizar os efeitos da crise externa no Brasil e garantir um crescimento de 4,5% (em 2009). Isso seria um desastre se fosse adotado, porque poderia criar um ambiente ruim no mercado. Quando o governo vai na direção errada os mercados precificam os riscos. E adotar a redução da meta do superávit sinalizaria uma fragilidade da situação fiscal do governo. Provavelmente cometeria um endividamento brusco neste momento, que não é recomendável. O momento não permite adotar políticas keynesianas. Isso poderia piorar o quadro de incertezas, que já domina a economia. Um outro equívoco do Ministério da Fazenda foi o de dizer que existe um limite para o Banco Central intervir no mercado de câmbio. Ainda bem que existe uma percepção tranqüilizadora do mercado de que as ações do Brasil para enfrentar a crise estão sendo comandadas e lideradas pelo BC, que, inclusive, está também negociando com a oposição em busca de apoio a MP.

Gazeta Mercantil - O que a equipe do Ministério da Fazenda poderia fazer nesse momento para ajudar a combater a crise?

Fazer o contrário do que sugeriu. Promover o aumento da meta do superávit primário. Além disso, trabalhar com o ministério do Planejamento para rever o Orçamento de 2009, pois os parâmetros que serviram de base para a elaboração do orçamento não são mais os mesmos. O cenário mudou. O crescimento da economia brasileira dificilmente atingirá o previsto entre 4,5% e 5%. A taxa de câmbio dificilmente será a mesma que está no Orçamento. Além de adotar ações para melhorar a situação fiscal e emitir sinais de maior tranqüilidade aos mercados, o Ministério da Fazenda poderia aproveitar o momento para sugerir a adoção de medidas estruturais. A experiência ensina que em momentos de crise o exercício de liderança tanto do chefe de governo como de seus ministros é fundamental para mobilizar o apoio político para reforçar os alicerces da economia. É hora de trabalhar com o Congresso, de tirar projetos da gaveta, de avançar em reformas. E não estamos vendo nada disso.

Gazeta Mercantil - Qual a sua sugestão para o aumento de meta do superávit primário?

Se aumentasse em 0,5 ponto percentual ou em 1 p.p. seria muito bom. Pois influenciaria positivamente as expectativas (dos investidores na economia) e melhoraria a percepção de risco do País. Isso reforçaria os fundamentos da economia, mostra um governo preparado para adotar medidas, por mais duras que sejam, no campo fiscal. Além disso, poderia reforçar a ação do BC (em não aumentar o juro para o combate à inflação).

Gazeta Mercantil - O Fundo Soberano do Brasil (FSB) já não permite o aumento da meta do superávit primário?

Esse fundo soberano é um truque contábil. É um fundo fiscal com objetivo de conceder subsídios a empresas brasileiras, de suprir recursos para o BNDES. Esse não é o momento certo para aprovar o fundo soberano, porque não é um fundo soberano. E a criação de um fundo soberano só se justifica em países que têm superávits em conta-corrente, superávits nominais no orçamento do setor público e que têm fonte de receita cambial muito concentrada em commodities.

Gazeta Mercantil - Como quais?

É o caso da Noruega, dos países árabes, ambos com fontes provenientes do petróleo; do Chile, com o cobre. Esses recursos são aplicados em um portfólio diversificados de papéis no exterior: em ações, em títulos, em papéis de renda fixa de outros países, com objetivos estratégicos. Enquanto que o fundo soberano do Brasil é destinado a compras de papéis de empresas brasileiras, o que foge das regras mínimas da gestão de fundos internacionais.

Gazeta Mercantil - Essa seria a hora para anunciar um pacote?

Essa seria a hora de o governo pensar em um pacote de medidas estruturais para reforçar os fundamentos da economia brasileira. O presidente tem rejeitado essa idéia de fazer um pacote. Mas, provavelmente, ele pensa nos pacotes do passado que tinham a ver com crises inflacionárias, com medidas mais graves para enfrentar crises de liquidez. Mas pacote não é nenhuma palavra indecente. Além do aumento da meta do superávit primário, poderiam dar prioridade à reforma tributária, ao cadastro positivo que está desprezado (ainda em trâmite no Congresso Nacional) e é importante para melhorar a percepção de risco do sistema financeiro. Além de outras medidas mais ousadas. Ninguém tem dúvida de que existe um cardápio muito gordo de medidas estruturais para ser implantado na economia brasileira.

Gazeta Mercantil - A ausência dessas medidas é uma estratégia de governo ou de falta de apoio político?

Eu diria que é falta de liderança. O ideal é que dispuséssemos de líderes com capacidade de ousar e não de só gerenciar a crise.

Gazeta Mercantil - O governo tem tentado minimizar os impactos dessa crise?

A preocupação do governo parece ser a de levar uma mensagem otimista à opinião pública dando a impressão de que a crise vai passar ao largo do Brasil. E que o Brasil vai continuar crescendo 4,5% ao ano. Essa é uma estratégia politicamente muito arriscada. O governo não pode pintar um mar de rosas, absolutamente, fora da realidade. Se a situação de crise se agravar, se os efeitos da crise no Brasil não forem os que estão se imaginando isso pode se voltar, mais à frente, contra ao próprio governo. Não cabe ao governo transmitir visões catastróficas da situação, mas é preciso preparar a população adequadamente, de forma confiável, para enfrentar essa situação.

Gazeta Mercantil - Quais os efeitos que se imagina que essa crise pode causar?

Desaceleração da economia e aumento do desemprego. Essa crise de crédito causará impacto negativo na atividade econômica. Dificilmente o PIB crescerá mais de 3,5% em 2009 e provavelmente o desemprego vai aumentar.

Gazeta Mercantil - Qual a tendência para a economia brasileira até 2010?

O panorama para 2010 vai depender muito do que acontecer em 2008. Depende se a crise for resolvida, se a confiança do mercado se recuperar rapidamente, se os fluxos de recursos se recuperarem. Aí o País terá tudo para enfrentar uma desaceleração da economia em 2009, com crescimento em torno de 3% e voltar a crescer em 2010. A Tendências Consultoria ainda não tem previsão para 2010. Este ano o Brasil crescerá acima de 5%.

Gazeta Mercantil - O Banco Central deve manter a política de aperto monetário na próxima reunião do Copom?

O BC precisa fazer uma parada técnica nessa reunião. Avaliar o quadro econômico nas próximas semanas. Não cabe aumentar a taxa Selic e nem reduzi-la. Neste momento, a Selic perdeu efetividade. O que se observa no mundo é uma redução da taxa de juros. O aumento a Selic, na próxima reunião, seria uma decisão na contramão do atual cenário mundial. Olhando os dados de inflação, haveria razões para aumentar a taxa de juros. Os dados ainda mostram a inflação muito pressionada, mesmo que tenha cedido por conta da queda das commodities. E essa inflação ainda não reflete os efeitos da crise, do cenário dramático da oferta de crédito.

Gazeta Mercantil - E qual a tendência para a taxa de câmbio?

A taxa de câmbio atual reflete o ambiente de incertezas, de redução de fluxos cambiais, de aumento da percepção de risco, das apostas de empresas brasileiras em operações cambiais que trouxeram prejuízos e do receio do agravamento da crise externa. Mas o câmbio não é compatível com os fundamentos da economia brasileira. A taxa reflete o ambiente de irracionalidade e de pânico que são característicos para esse momento agudo da crise. Na medida que o BC for capaz de suprir dólares no mercado à vista, o real deve se valorizar. E dificilmente a taxa deverá terminar este ano acima de R$ 2,00.

(Gazeta Mercantil/Finanças & Mercados - Pág. 3)(Viviane Monteiro)