Título: A integração do Mercosul em novo patamar
Autor:
Fonte: Gazeta Mercantil, 21/09/2004, Opinião, p. A-3
A decisão do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) de financiar a construção do gasoduto San Martin, na Argentina, pode ser avaliada, conjunturalmente, como iniciativa oportuna para se evitar novas crises energéticas no país vizinho. A construção, que estará a cargo de empresas brasileiras e argentinas, com participações acionárias equilibradas, unirá a Patagônia a Buenos Aires e correrá paralela ao já existente, duplicando a sua capacidade de transporte de quatro para oito milhões de metros cúbicos de gás por dia. Orçado em US$ 285 milhões, o projeto receberá do BNDES - que terá como beneficiária a Petrobras -, U$ 70 milhões para a compra de tubos e US$ 72 milhões para engenharia e obras civis; o restante será aportado por outras empresas petrolíferas e pelo Estado argentino. A decisão é fruto dos entendimentos, na semana passada, entre os governos argentino e brasileiro, a propósito do contencioso comercial entre os dois países desencadeado pela decisão de Kirchner de impor cotas à importação de eletrodomésticos fabricados no Brasil.
Mas o fato mais auspicioso que emergiu das negociações, anunciado na sexta-feira passada na capital da Argentina pelo presidente do BNDES, Carlos Lessa, é que o banco passará a tratar como "empresas nacionais" as empresas argentinas que lhe solicitarem crédito. A única restrição, segundo informou Lessa, é que as partes e os componentes têm de ser produzidos por empresas cujo capital seja controlado por firmas do Mercosul."
Esta é primeira vez que uma instituição financeira estatal nacional intervém como entidade transnacional no processo de integração do Mercosul - e é de registrar que uma tal iniciativa coloca nova ênfase nesse processo. A integração, como se sabe, é um ato político - ou, um processo de desenvolvimento integral - entre povos que buscam sua autodeterminação histórica como nação, para uma melhor qualidade de vida. Contempla liberalização comercial, adoção de tarifa externa comum e única, coordenação de políticas macroeconômicas e estabelecimento de acordos setoriais visando à integração das estruturas produtivas, incorporação de tecnologia, produção em escala, conquista de novos mercados, entre outras políticas.
Embora seja o projeto de integração com maior sucesso na história da cooperação econômica e política na América Latina, o Mercosul, depois de quinze anos de sua criação, encontra-se ainda muito distante de seus objetivos. Mantém-se de modo claudicante como união aduaneira em meio a pretensões de seus integrantes de fazê-lo avançar para um Mercado Comum. O recente contencioso comercial entre Brasil e Argentina, que se tornou conhecido como "guerra das geladeiras", revela a necessidade de se avançar na construção harmônica das respectivas estruturas produtivas para que o projeto inicial de integração efetiva ocorra.
Como mostrou a experiência da integração da União Européia, que teve origem em 1952 com a criação da Comunidade Européia do Carvão e do Aço, grandes projetos de integração entre países com o objetivo de desenvolvimento regional são postos em marcha a partir de sua integração física, mediante projetos comuns energéticos, de transportes e outros. O próprio Mercosul, cujos países membros compartilham o espaço de uma mesma bacia hidrográfica, foi precedido de um empreendimento binacional na área energética - Itaipu.
Apesar das dificuldades no caminho da integração, o Mercosul é uma realidade econômica de dimensões continentais: uma área total de mais de 11 milhões de km², um mercado de 200 milhões de habitantes e um PIB conjunto de mais de US$ 1 trilhão, o que o coloca entre as cinco maiores economias. O bloco dispõe de enorme potencial econômico, ainda por realizar.
Esse potencial depende, no entanto, para seu pleno desenvolvimento, de investimentos na sua infra-estrutura física. Atentos a isso, os países membros se vêm dedicando à elaboração de grandes projetos de integração energética, rodoviária, ferroviária e hidroviária, para os quais se prevêem investimentos de cerca de US$ 100 bilhões.
Crises da dívida, associadas a acentuada instabilidade macroeconômica interna, especialmente no Brasil e na Argentina, na década de 90, colocaram em segundo plano as propostas de integração física, planejadas em anos menos turbulentos. A situação atual de ambos os países não é de plena bonança. O Brasil patina em taxas medíocres de crescimento há dez anos, enquanto a Argentina negocia a recuperação de sua credibilidade financeira externa.
Mas a decisão do BNDES, de apoiar um projeto bionacional na área energética, faz lembrar que a vontade de integração permanece atual.
kicker: O BNDES pode operar como instituição financeira de fomento a projetos do Mercosul, conferindo nova dimensão à integração